domingo, agosto 25, 2013

A PARTIR DAÍ...

Faz tempo... Na noite sem lua as roupas de montaria não poderiam ser mais estranhas: palhaços, piratas, havaianas e odaliscas cavalgam em demanda ao baile de carnaval do hotel, naquele povoado recém promovido à cidade. Adolescentes, já não mais freqüentam o baile infantil. As idades agora variam entre quinze e dezoito.
Naquele verão, pares haviam se formado em emocionantes namoros: o primeiro para todos eles. Conheciam-se desde sempre e, surpresos e encantados, se deram conta de que a noite podia trazer coisas mais emocionantes do que procurar buracos de tatu na mata. Os cavalos, amarrados na cerca, estão resignados com a espera que será longa e observam com olhos tristes o bando que, aos pares mão na mão, entram no salão. Relegados agora à condição de meio de transporte sentem saudades do tempo em que eram incluídos nas brincadeiras, como se humanos fossem.         
Sentadas em cadeiras dispostas ao longo da parede, hóspedes idosas com um olhar crítico, observam os enlouquecidos foliões que, aos berros, perguntam cantando: “que rei sou eu, sem reinado e sem coroa! ... Não se dirá romântica, a marchinha do ano, e muito menos é o saracoteio a que leva, mas a esta altura tudo é romântico para a menina-moça que olho nos olhos do amado, sente-se como valsando. O arrebatamento não é só seu. O namorado, até pouco tempo atrás apenas o mais temido adversário nas provas de salto, está também perdido de amores. Tão perdido que, incapaz de se conter, a toma nos braços, beijando-a no melhor estilo dos filmes da época. A havaiana e o pirata transmudam-se em Clark Gable e Vivien Leigh, numa cena tórrida.
E foi este beijo que deslanchou o incidente que iria modificar para todo sempre sua vida – a dela. Uma das senhoras foi queixar-se ao gerente do hotel: aquilo era inadmissível! Um atentado à moral e aos bons costumes locais. O gerente chama o rapaz à parte e exige um comportamento mais adequado aos olhos das matronas presentes. Ele, indignado e altivo, parte para você sabe com quem está falando? A família dela vai saber disto e não quero estar na sua pele amanhã.
Os beijos cessam por prudência; a indignação, não! O grupo, ao voltar para casa, delicia-se com a mais que prevista reação do tio pediatra, famoso por sua fúria incontida. O gerente será trucidado!  Demitido! Banido da cidade! Na mesa do café ela conta tudo à família reunida. E o pandemônio eclode! É o cúmulo! Onde já se viu! É inadmissível! Que audácia!
No café da manhã o tio pediatra explode esfregando a mãos num gesto que simula a execução da terrível ameaça: vou trucidá-lo. Reduzi-lo a pó de traque! Como sempre, após a explosão dos tios e tias, vem o silêncio para o pronunciamento da avó: gentinha! É o que nos traz esta modernidade! Poremos um paradeiro nisto!  A menina, encantada com o apoio que nunca lhe faltou, ri alegre. Aquele gerente idiota vai ver só o que é bom!
Mas o riso morre com o horror e o medo que lhe causa o berro do pai: Sua aristocratasinha tola e vazia. Quem você está pensando que é? Um silêncio pesado cai sobre a mesa. Lágrimas começam a brotar de seus olhos. O pai nunca fez isto! Pior é que não pára por ai. Absurdamente ele parte em defesa do gerente, acusando a ela! Como ousa desdenhar dos costumes e usos do lugar? Como ousa ameaçar um homem que está trabalhando e fazendo cumprir regras determinadas por seu trabalho? Proíbo -  – escutou bem, mocinha? – proíbo que se faça qualquer coisa a respeito. Se há alguma coisa a ser feita é um pedido de desculpas. Suas! A senhora vai ter muito que aprender daqui por diante! E ele se levanta, abandonando a mesa, deixando a família embasbacada.
Numa situação nunca vista como esta, somente a avó poderá intervir. Os olhares se dirigem para ela que estranhamente fala deixando de tocar nas medidas corretivas destinadas ao gerente: trata-se de um comunista! Toda família tem um! Ainda bem que este é apenas cônjuge. O episódio está encerrado. Ninguém fala mais nisto. Vamos terminar o café em paz!  Paz? Como?! E o apoio da  avó que não veio? O mundo desaba sobre ela. O pai?! Logo ele que ela adora acima de tudo e de todos.
Levanta-se quase derrubando a cadeira e vai chorar na varanda. Mais estranhamente ainda a avó não exige o retorno à mesa, como seria de se esperar. E, na varanda, ela se entrega ao desespero até que braços carinhosos a envolvem. São os do tio jogador. Soluçando se agarra a ele. Há muito o colo dos tios não é mais um porto seguro. Mas hoje... é tudo que quer. Ele apenas acaricia seus cabelos sem falar nada.
Uma confusão enorme toma conta dela. Busca o apoio certo: quem tem razão? Ele sorri, um sorriso quase triste: seu pai. Ela se revolta: logo você? Você nunca concorda com ele! Você não concorda com nada do que ele falou! Eu sei! O sorriso volta ainda mais triste: somos uma raça em extinção, meu bem! Seu pai... é o futuro. E ele te adora, minha linda. Vá conversar com ele. Mas, olha só, nunca deixe de gostar da gente. E agora, meu bem, enxuga este rosto e vamos ao pôquer.
Ainda sem entender, mas sentindo que alguma coisa havia mudado, volta a sorrir. E foi ao pôquer e, naquela mesma tarde, foi ao pai. A partir daí, começou a longa conversa que só terminou quando ele se foi, muitos anos mais tarde quando ela já era mãe. Mas fiel ao tio jogador, nunca deixou de gostar - amar mesmo – aquela família tão maravilhosamente louca. 

2007

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