Faz tempo... Na noite sem lua as roupas de montaria não
poderiam ser mais estranhas: palhaços, piratas, havaianas e odaliscas cavalgam
em demanda ao baile de carnaval do hotel, naquele povoado recém promovido à
cidade. Adolescentes, já não mais freqüentam o baile infantil. As idades agora
variam entre quinze e dezoito.
Naquele verão, pares haviam se formado em emocionantes
namoros: o primeiro para todos eles. Conheciam-se desde sempre e, surpresos e
encantados, se deram conta de que a noite podia trazer coisas mais emocionantes
do que procurar buracos de tatu na mata. Os cavalos, amarrados na cerca, estão
resignados com a espera que será longa e observam com olhos tristes o bando
que, aos pares mão na mão, entram no salão. Relegados agora à condição de meio
de transporte sentem saudades do tempo em que eram incluídos nas brincadeiras,
como se humanos fossem.
Sentadas em cadeiras dispostas ao longo da parede, hóspedes
idosas com um olhar crítico, observam os enlouquecidos foliões que, aos berros,
perguntam cantando: “que rei sou eu, sem reinado e sem coroa! ... Não se dirá romântica, a marchinha
do ano, e muito menos é o saracoteio a que leva, mas a esta altura tudo é
romântico para a menina-moça que olho nos olhos do amado, sente-se como
valsando. O arrebatamento não é só seu. O namorado, até pouco tempo atrás apenas
o mais temido adversário nas provas de salto, está também perdido de amores.
Tão perdido que, incapaz de se conter, a toma nos braços, beijando-a no melhor
estilo dos filmes da época. A havaiana e o pirata transmudam-se em Clark Gable
e Vivien Leigh, numa cena tórrida.
E foi este beijo que deslanchou o incidente que iria
modificar para todo sempre sua vida – a dela. Uma das senhoras foi queixar-se
ao gerente do hotel: aquilo era inadmissível! Um atentado à moral e aos bons
costumes locais. O gerente chama o rapaz à parte e exige um comportamento mais
adequado aos olhos das matronas presentes. Ele, indignado e altivo, parte para você sabe com quem está falando? A família
dela vai saber disto e não quero estar na sua pele amanhã.
Os beijos cessam por prudência; a indignação, não! O grupo,
ao voltar para casa, delicia-se com a mais que prevista reação do tio pediatra,
famoso por sua fúria incontida. O gerente será trucidado! Demitido! Banido da cidade! Na mesa do café
ela conta tudo à família reunida. E o pandemônio eclode! É o cúmulo! Onde já se
viu! É inadmissível! Que audácia!
No café da manhã o tio pediatra explode esfregando a mãos num
gesto que simula a execução da terrível ameaça: vou trucidá-lo. Reduzi-lo a pó de traque! Como sempre, após a
explosão dos tios e tias, vem o silêncio
para o pronunciamento da avó: gentinha! É
o que nos traz esta modernidade! Poremos um paradeiro nisto! A menina, encantada com o apoio que nunca lhe
faltou, ri alegre. Aquele gerente idiota vai ver só o que é bom!
Mas o riso morre com o horror e o medo que lhe causa o berro
do pai: Sua aristocratasinha tola e vazia.
Quem você está pensando que é? Um silêncio pesado cai sobre a mesa.
Lágrimas começam a brotar de seus olhos. O pai nunca fez isto! Pior é que não
pára por ai. Absurdamente ele parte em defesa do gerente, acusando a ela! Como ousa desdenhar dos costumes e usos do
lugar? Como ousa ameaçar um homem que está trabalhando e fazendo cumprir regras
determinadas por seu trabalho? Proíbo - – escutou bem, mocinha? – proíbo que se faça
qualquer coisa a respeito. Se há alguma coisa a ser feita é um pedido de
desculpas. Suas! A senhora vai ter muito que aprender daqui por diante! E
ele se levanta, abandonando a mesa, deixando a família embasbacada.
Numa situação nunca vista como esta, somente a avó poderá
intervir. Os olhares se dirigem para ela que estranhamente fala deixando de
tocar nas medidas corretivas destinadas ao gerente: trata-se de um comunista! Toda família tem um! Ainda bem que este é
apenas cônjuge. O episódio está encerrado. Ninguém fala mais nisto. Vamos
terminar o café em paz! Paz? Como?!
E o apoio da avó que não veio? O mundo
desaba sobre ela. O pai?! Logo ele que ela adora acima de tudo e de todos.
Levanta-se quase derrubando a cadeira e vai chorar na
varanda. Mais estranhamente ainda a avó não exige o retorno à mesa, como seria
de se esperar. E, na varanda, ela se entrega ao desespero até que braços
carinhosos a envolvem. São os do tio jogador. Soluçando se agarra a ele. Há
muito o colo dos tios não é mais um porto seguro. Mas hoje... é tudo que quer.
Ele apenas acaricia seus cabelos sem falar nada.
Uma confusão enorme toma conta dela. Busca o apoio certo: quem tem razão? Ele sorri, um sorriso
quase triste: seu pai. Ela se
revolta: logo você? Você nunca concorda
com ele! Você não concorda com nada do que ele falou! Eu sei! O sorriso
volta ainda mais triste: somos uma raça
em extinção, meu bem! Seu pai... é o futuro. E ele te adora, minha linda. Vá
conversar com ele. Mas, olha só,
nunca deixe de gostar da gente. E agora, meu bem, enxuga este rosto e vamos ao
pôquer.
Ainda sem entender, mas sentindo que alguma coisa havia
mudado, volta a sorrir. E foi ao pôquer e, naquela mesma tarde, foi ao pai. A
partir daí, começou a longa conversa que só terminou quando ele se foi, muitos
anos mais tarde quando ela já era mãe. Mas fiel ao tio jogador, nunca deixou de
gostar - amar mesmo – aquela família tão maravilhosamente louca.
2007
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