Ando
tendo saudades do futuro. Este – o futuro – até então só entrava em minhas
cogitações no que toca a rápida perda do poder aquisitivo dos proventos da
aposentadoria. Mas este pensamento sempre descartei pela inevitabilidade da
perda total, inegável pelas projeções matemáticas, caso eu tenha a ousadia de
viver mais do que devo. Mas de uns tempos para cá se iniciou insidioso o pensar
o futuro a partir da conjuntura atual. Como sempre acontece em previsões
futuras, é difícil ser honesta. O desejo de que boas coisas aconteçam invade a
técnica e, sem querer, a gente dá uma pequena ajuda, aqui e ali, tornando a
visualização da situação futura mais agradável, ou pelo menos mais palatável.
Mas as coisas andam confusas demais e para partir do que está acontecendo –
condição indispensável para qualquer projeção - é necessário perceber claramente este "está acontecendo". E isto está se revelando impossível: situações invertem-se em dias e
mesmo horas. As coisas são ditas, desditas e não ditas numa rapidez e
desfaçatez impressionantes. E durma-se com um barulho destes! Vai daí que passo
a construir cenários sem me valer da técnica mais me escudando no desejo imenso
de que as coisas cheguem a bom termo. Não para mim, é claro, o INSS não vai
permitir futuro que se preze, qualquer que seja o cenário, Mas para
meus filhos, netas e bisneta. E aí bate a saudade! Saudade de um futuro a que
me levava a análise da conjuntura que se apresentava no momento e que me
conduzia a paragens possíveis de se viver. Umas mais atrativas, outras menos,
mas todas “vivíveis”.
Lembro-me que logo após o impeachment do Collor um amigo
e eu fizemos uma séria análise da conjuntura que se apresentava na época. Nos
dedicamos pra valer. Examinamos os cenários, o comportamento dos atores, os fatos
reais, enfim tudo que nos pudesse levar a projeções futuras. E nelas – todas -
encontramos a esperança de dias melhores. E deu no que deu! Furiosamente
desabei, semana passada, todas as prateleiras de cima dos armários onde guardo
minha vida pregressa. Precisava conferir onde e por que erramos. Quais as
premissas falsas que nos haviam levado a este horror. Nesta busca me caiu nas
mãos uma foto antiga e desbotada da casa do sítio de minha avó, em Miguel
Pereira. Estávamos todos na varanda cercando a nobreza da avó. E a luz se fez!
Desisti da busca do futuro e voltei-me para a certeza do passado.
Tinha eu uns
10 anos. A família reunida, tarde da noite, conversava na enorme sala. Nós, as
crianças, estávamos espalhadas aleatoriamente nos colos de mães, pais, tios e
tias, quase dormindo embaladas por assuntos que às vezes entendíamos, às vezes
não, mas que nos davam uma enorme sensação de conforto e proteção. Chovia
muito. Era daquelas chuvas de verão que de tão fortes impedem a visão do lá
fora. Ainda não havia luz por lá. E a do lampião enorme que pendia do teto
convidava a fechar os olhos e apenas ouvir. Eis que de repente, os cães
começaram a latir furiosamente. Pais e tios vestem seus ponchos e munidos de
lanternas saem à cata do que quer que fosse.
Não havia grandes ameaças, naquele
tempo. Mas o palmito e as frutas, vez por outra, sofriam alguns ataques.
Excitados, abrimos os olhos e corremos para as janelas, buscando uma brecha
entre avó, mães e tias procurando ver, através da chuva, a luz bruxuleante das
lanternas. De repente todas convergiram para um só ponto e para o alto. Ouvimos
as vozes irritadas dos pais e tios ordenando: desce daí! Alguém havia se encarrapitado em uma árvore, acuado
pelos cães. As luzes das lanternas foram descendo e pouco depois se dirigiram
em grupo para a casa.
Corremos para a varanda e reconhecemos Seu Dezinho,
conhecido surrupiador de palmitos, escoltado pelos varões da família para ser
submetido ao julgamento de minha avó, como era de lei. No silêncio que sempre
se estabelecia em situações graves como esta, minha avó adiantou-se para cobrar
a justificativa esperada. Entre divertidos e espantados escutamos o diálogo que esclarecia o
extraordinário motivo da intrusão noturna e alagada:
- ‘Noite, Dona Maria Clara!
- Boa noite, seu Dezinho. E então?! O que faz aqui
por estas horas?
- Dona Maria Clara! Eu tava vindo pela estrada e me veio um “pensa” assim: será que Dona Maria Clara ia ter vontade de "criá" uma
saracura? Eu tenho uma pra "vende".
O dito
perdura até hoje na família e é usado todas as vezes que alguém para
justificar-se do injustificável parte para o absurdo. Entendo agora porque não
consigo formular qualquer projeção lógica a partir do que ocorre hoje em dia.
Todos os atores que podem me fornecer informações que permitiriam elaborar um
raciocínio lógico estão querendo me vender saracura!
2005
E muita gente acredita nos vendedores de saracura.
ResponderExcluirManoel Carlos
Manoel Carlos, o pior é que além de acreditar compram!
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