Quase
setenta anos, vários casamentos e uma enorme solidão. É... Ele poderia ser
descrito assim. A isto, adjetivos outros poderiam se juntar. Mas em nada iriam
alterar o quadro, ainda que charmoso, inteligente, agradável e excelente
profissional. Por que o que pesava mesmo era a solidão. Podia-se notar, nos
momentos em que não se policiava, uma tristeza no olhar que, mesmo capaz de
produzir o brilho, negava esta possibilidade.
Ele
a encontrou sem planejar. Nem mesmo estava procurando. Quer dizer, não estava
procurando “a” mulher. Procurava “uma”. Sempre o fazia. “A” foi o acaso criado
por um olhar descuidado e um sorriso maroto que lhe escapou à censura
costumeira. ‘Tava desprevenido, sabe? Nem podia imaginar! Vai daí não teve
jeito: aos poucos foi se envolvendo, encantado com as afinidades, mas,
sobretudo com as diferenças.
Desfrutando
apaixonado a beleza dos desejos da cama, da mesa... da vida. Podia até ser
piegas, mas ele lia versos para ela, deslumbrado pela mutua compreensão do
sentido, numa emoção da voz e do olhar. Ela era mais moça. Não escandalosamente
mais moça. Mais moça, apenas. Era bonito de se ver e, para ele, bonito de
sentir.
Mas
toda esta coisa gostosa foi só no início. Porque quando ele se percebeu
gostando de verdade, e pior que isto, sendo gostado pelo que era, o medo bateu.
Bateu lá nele. Um medo indefinido que começou a se materializar em ações e
omissões. Ele nem mesmo percebia esse distanciamento a que se obrigava, atacado
por perguntas que não fazia, mas sentia. E se não der certo? E se for como das
outras vezes? E se ela me deixar, assim, de repente? Que garantias eu tenho?
Para
ela não dizia nada. Emudecia, cada vez mais. Uma pena! Uma pena mesmo! Os quase
setenta anos de passado acumulado como entulho forneciam uma fonte inesgotável
de razões que borravam a visão do pra frente. E ele se indagava como poderia
assumir uma ligação com os problemas que tinha. Na idade que tinha. Porque
problemas para ele, além de não poderem ser compartilhados, não tinham solução.
E continuava o martírio: quanto me custará recomeçar? Quanto tempo ainda tenho?
Engraçado! Ele não percebia que esta última pergunta não tem sentido, em
qualquer idade. Em todas estas dúvidas ele encontrava razão para uma
confortável e triste imobilidade, para não mudar, para não ousar, para não
arriscar.
E
vai daí que não mudou, e vai daí que não ousou e vai daí que não arriscou. E
ela foi murchando. Sofria sem entender os sumiços, as palavras dúbias, o não
dizer. Foi um bocado triste. E foi então que ela começou a desgostar. Sofria e
desgostava. Sofria e desgostava. Primeiro numa proporção que pendia mais para o
sofrimento, para a dor. Mas com o passar dos dias foi-se voltando para o
desgostar. Desgostar até dela mesma.
E
chegou o momento em que isso foi tão forte que exigiu um fim, para que ela
pudesse viver, para que ela pudesse sobreviver. Mais ainda, para que ela
pudesse guardar na lembrança as coisas boas - tão boas - sem raiva, sem mágoa.
Para ele, o desenlace significou a retomada dos “quase setenta anos, vários
casamentos e uma grande solidão”. Só que agora essa solidão parecia bem maior.
E, porque não conhecia outra maneira de pensar as coisas, ele comodamente
acreditou que todo o tempo havia estado coberto de razão. Viu só como ela se
foi? Viu só?! Se tivesse arriscado teria dançado!
Esta
é uma história comum. Comum no sentido de que é freqüente, usual e costumeira,
sobretudo para aqueles que têm quase setenta anos e têm medo de ainda viver,
para o que der e vier. Sobretudo para o que vier, assim num por acaso do olhar
descuidado e do sorriso maroto.
Na
apresentação de um belo documentário de Joaquim Assis sobre o medo há uma
frase: “Existem pessoas que passam a vida impossibilitando o desejável para
depois desejarem este impossível”. Eu, heim? Que desperdício!
2005
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