quarta-feira, agosto 28, 2013

VERSÃO BAIANA DA GENESE MOSAICA

E Deus disse também à mulher: Afiigir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará. Pois é! Eu nunca fui agraciada com os vaticínios do senhor. Passados tantos anos ainda tenho esta frustração. A gênese não se aplicava às minhas délivrances. Eram tão emocionantes e bonitas as descrições dos nascimentos dos filhos das amigas: horas de dor e desconforto, maridos ao lado segurando mão, olhar terno e emocionado...
Comigo nada disto acontecera. Desde o primeiro (foram três) os nascimentos mais pareciam uma ópera bufa. Eu havia inventado o parto sem dor antes que existisse. Não só sem dor, mas a jato fazendo com que o médico tivesse o desplante de dizer em minha segunda gravidez: este você vai ter sozinha no gramado de sua casa. Não tem sentido me tirar da cama para você expelir esta criança no momento em que eu saio por um minuto da sala. E por pouco não foi no gramado! Mas em uma maca no corredor do hospital porque não deu tempo de chegar à sala de parto.
E marido emocionado nem pensar: no primeiro ele estava dormindo e disse um absurdo quando o acordei informando que a hora era aquela e que era melhor procurar o médico: dorme que passa!  No segundo, uma menina, que teve o mau gosto de nascer no corredor enquanto o pai estava fornecendo informações para internação na portaria.
Assim, quando se anunciara a chegada do terceiro, em Salvador, eu não mais esperava nada de normal. Era um temporão. Oito anos o separava da irmã e dez do irmão. Naquela casa da praia de Ondina e naquele mês de setembro de 1961 o rebento era esperado para qualquer hora com alegre expectativa. O clima político, instável, culminaria pela renuncia de Janio Quadros e a Base Aérea de Salvador entrava e saia da prontidão. Isto significava marido ausente. E eu pensei: vai ser agora, com certeza. Na casa não havia telefone e nem este existia nas casas vizinhas (todas também sem marido).
E o inevitável aconteceu. A bolsa d’água estoura às onze da noite do dia 14 de setembro. Fazer o que? O jeito era deixar os dois mais velhos com a vizinha e grande amiga e pegar o carro rumo ao hospital. De lá ligaria para o médico. O carro era uma caminhonete Renault que positivamente não havia sido projetada para mulheres em adiantada gravidez. Por mais que afastasse a cadeira do motorista a barriga era perigosamente acariciada a cada movimento do volante o que digamos não era muito confortável, sobretudo com um nascimento iminente.
E lá fui eu parando a cada contração. Quando isto acontecia cruzava os braços sobre o volante deitando nele a cabeça enquanto respirava fundo. Tão logo terminava a dança do ventre voltava a dirigir a caminho do Hospital Espanhol que ficava na ladeira da Av. Sete de Setembro. Na altura do Farol da Barra quando realizava uma das paradas escuto uma voz ao lado da janela: tá se sentindo mal, dona? Levanto a cabeça e dou com um jovem guarda de trânsito. Negro, com o rosto extremamente simpático, exibia uma expressão de real preocupação. Explico que estou indo para o hospital e que não dá para dirigir quando vem uma contração. O ar dele é de assombro: vai ter menino agora?! Vixe! Tento acalmar o guarda: vai dar tempo de chegar. E ele abrindo a porta grita: e não vai? Só se eu não me chamo Roque. Passa pra lá. E Roque me empurra sem dó nem piedade para o acento do carona assumindo a  direção.
Para meu espanto coloca na boca um apito e com a cabeça para fora da janela vai apitando furiosamente transformando a Renault numa ambulância anêmica que tresloucada avança pelas ruas totalmente desertas. Entra no hospital cantando os pneus e gritando: polícia! Socorro aqui! Uma horda de atendentes e enfermeiros me arranca do carro, colocando-me na maca.
Forneço o nome do médico que para minha sorte estava no hospital acabando de realizar um parto. Este não era o mesmo médico que me havia atendido nos dois outros partos que haviam ocorrido em Natal. Eu mal o conhecia. Portanto foi com surpresa que verifiquei ser ele tão louco quanto o anterior. O homem era fanático por ópera e resolveu compartilhar comigo esta paixão iniciando a récita por Ridi Pagliacci cantada a plenos pulmões. Leoncavallo jamais imaginou ver sua famosa ária como pano de fundo para o nascimento de um pequeno baiano.
Nos intervalos entre inúmeras árias o médico me informa que ópera o faz rir e chorar. Contenho-me para não dizer: a mim agora também. Como das outras vezes tudo se passa muito rápido e no momento em que o rebento aparece (momento em que o script exigiria exclamações de ternura de um marido) o médico grita com sua voz operística: Isto não é um menino. É um bezerro! A esta altura eu já estava achando tudo possível e aguardei um mugido ao invés de choro. Mas este finalmente veio e a emoção foi grande anulando toda a comédia de pastelão.
Como nos partos anteriores exijo ver, em todos os seus detalhes, o belo menino, verificando a presença de todos os dedos. E ele é levado pela enfermeira do berçário deixando um vazio. No enorme cansaço fecho os olhos enquanto a maca é empurrada para fora da sala. E ai vem o grito numa voz já conhecida. O rosto simpático e radiante do guarda Roque se debruça sobre a maca: nós teve um menino, dona! É um russinho! Dos mais bonitos que já vi. Hoje tô é com tudo! Bendito Roque: eu também estava com tudo!   
2010


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