E Deus disse também à
mulher: Afiigir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor;
estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará. Pois
é! Eu nunca fui agraciada com os vaticínios do senhor. Passados tantos anos
ainda tenho esta frustração. A gênese não se aplicava às minhas délivrances.
Eram tão emocionantes e bonitas as descrições dos nascimentos dos filhos das
amigas: horas de dor e desconforto, maridos ao lado segurando mão, olhar terno
e emocionado...
Comigo
nada disto acontecera. Desde o primeiro (foram três) os nascimentos mais
pareciam uma ópera bufa. Eu havia inventado o parto sem dor antes que
existisse. Não só sem dor, mas a jato fazendo com que o médico tivesse o
desplante de dizer em minha segunda gravidez: este você vai ter sozinha no gramado de sua casa. Não tem sentido me
tirar da cama para você expelir esta criança no momento em que eu saio por um
minuto da sala. E por pouco não foi no gramado! Mas em uma maca no corredor
do hospital porque não deu tempo de chegar à sala de parto.
E
marido emocionado nem pensar: no primeiro ele estava dormindo e disse um
absurdo quando o acordei informando que a hora era aquela e que era melhor
procurar o médico: dorme que passa! No segundo, uma menina, que teve o mau gosto
de nascer no corredor enquanto o pai estava fornecendo informações para
internação na portaria.
Assim,
quando se anunciara a chegada do terceiro, em Salvador, eu não mais esperava
nada de normal. Era um temporão. Oito anos o separava da irmã e dez do irmão.
Naquela casa da praia de Ondina e naquele mês de setembro de 1961 o rebento era
esperado para qualquer hora com alegre expectativa. O clima político, instável,
culminaria pela renuncia de Janio Quadros e a Base Aérea de Salvador entrava e
saia da prontidão. Isto significava marido ausente. E eu pensei: vai ser agora,
com certeza. Na casa não havia telefone e nem este existia nas casas vizinhas
(todas também sem marido).
E
o inevitável aconteceu. A bolsa d’água estoura às onze da noite do dia 14 de
setembro. Fazer o que? O jeito era deixar os dois mais velhos com a vizinha e
grande amiga e pegar o carro rumo ao hospital. De lá ligaria para o médico. O
carro era uma caminhonete Renault que positivamente não havia sido projetada
para mulheres em adiantada gravidez. Por mais que afastasse a cadeira do
motorista a barriga era perigosamente acariciada a cada movimento do volante o
que digamos não era muito confortável, sobretudo com um nascimento iminente.
E
lá fui eu parando a cada contração. Quando isto acontecia cruzava os braços
sobre o volante deitando nele a cabeça enquanto respirava fundo. Tão logo
terminava a dança do ventre voltava a dirigir a caminho do Hospital Espanhol
que ficava na ladeira da Av. Sete de Setembro. Na altura do Farol da Barra
quando realizava uma das paradas escuto uma voz ao lado da janela: tá se sentindo mal, dona? Levanto a
cabeça e dou com um jovem guarda de trânsito. Negro, com o rosto extremamente
simpático, exibia uma expressão de real preocupação. Explico que estou indo
para o hospital e que não dá para dirigir quando vem uma contração. O ar dele é
de assombro: vai ter menino agora?! Vixe!
Tento acalmar o guarda: vai dar tempo de chegar. E ele abrindo a porta
grita: e não vai? Só se eu não me chamo
Roque. Passa pra lá. E Roque me empurra sem dó nem piedade para o acento do
carona assumindo a direção.
Para
meu espanto coloca na boca um apito e com a cabeça para fora da janela vai
apitando furiosamente transformando a Renault numa ambulância anêmica que
tresloucada avança pelas ruas totalmente desertas. Entra no hospital cantando
os pneus e gritando: polícia! Socorro aqui! Uma horda de atendentes e
enfermeiros me arranca do carro, colocando-me na maca.
Forneço
o nome do médico que para minha sorte estava no hospital acabando de realizar
um parto. Este não era o mesmo médico que me havia atendido nos dois outros
partos que haviam ocorrido em Natal. Eu mal o conhecia. Portanto foi com
surpresa que verifiquei ser ele tão louco quanto o anterior. O homem era
fanático por ópera e resolveu compartilhar comigo esta paixão iniciando a
récita por Ridi Pagliacci cantada a plenos pulmões. Leoncavallo jamais imaginou
ver sua famosa ária como pano de fundo para o nascimento de um pequeno baiano.
Nos
intervalos entre inúmeras árias o médico me informa que ópera o faz rir e
chorar. Contenho-me para não dizer: a mim agora também. Como das outras vezes
tudo se passa muito rápido e no momento em que o rebento aparece (momento em
que o script exigiria exclamações de ternura de um marido) o médico grita com
sua voz operística: Isto não é um menino.
É um bezerro! A esta altura eu já estava achando tudo possível e aguardei
um mugido ao invés de choro. Mas este finalmente veio e a emoção foi grande
anulando toda a comédia de pastelão.
Como
nos partos anteriores exijo ver, em todos os seus detalhes, o belo menino,
verificando a presença de todos os dedos. E ele é levado pela enfermeira do
berçário deixando um vazio. No enorme cansaço fecho os olhos enquanto a maca é
empurrada para fora da sala. E ai vem o grito numa voz já conhecida. O rosto
simpático e radiante do guarda Roque se debruça sobre a maca: nós teve um menino, dona! É um russinho! Dos
mais bonitos que já vi. Hoje tô é com
tudo! Bendito Roque: eu também
estava com tudo!
2010
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