terça-feira, agosto 27, 2013

PODER DE SÍNTESE

Sempre admirei a capacidade de síntese de que são dotadas algumas pessoas. Com pouquíssimas palavras conseguem se fazer entender dizendo tudo que tem que ser dito enquanto eu peno para reduzir a enxurrada de palavras que acaba por tornar tudo confuso. Tenho pra mim que ser sintético é uma qualidade nata: não se aprende. Nasce com a gente ou não. Síntese sempre me deu a sensação de certeza e verdade. É quase impossível pregar mentiras sintéticas. Mentiras devem sofrer, necessariamente, uma complexa elaboração para não deixar furos, embora estes sempre terminem por se fazer presentes. O “penso, logo existo” de Descartes é um dos exemplos clássicos de síntese. Contém um mundo em três palavras. Livros inteiros foram escritos concordando, discordando ou comentando esta afirmação. E ainda, aos milhares, existem os japoneses craques na arte da síntese, com os seus maravilhosos haikais. Houve uma época em que desesperadamente eu procurei criá-los com o esquema preconizado por Guilherme de Almeida: o primeiro verso rimando com o terceiro e o segundo apresentando a segunda sílaba em rima com a sétima. Os resultados que obtive foram patéticos como atesta uma de minhas muitas tentativas: 
O gato sonolento deu um mio
e no coração do avô
a sensação de imenso triste vazio
Tá legal, não precisam me dizer: gato com sono “dando” um mio é uma lamentável construção, indigna de um rebento nipônico de quatro anos (tenho para mim que quando começam a falar balbuciam haikais perfeitos). Vai daí que o mio do gato que causou o vazio no avô encerrou o ciclo de minhas infrutíferas tentativas me ficando como consolo o fato de que não tem o menor sentido ficar fazendo versos japoneses quando não os faço nem à moda pátria. O jeito foi continuar a morrer de inveja daqueles que conseguem ir direto ao ponto. Entre estes, com louvor, situa-se meu único sobrinho Pedro Paulo que aos pouco mais de dois anos foi capaz de uma proeza espantosa no terreno da síntese. Meu irmão contava histórias para os filhos na hora de dormir. Marina, um ano mais velha que Pedro Paulo, era uma matraca, quem sabe herdeira do DNA da tia. Pois bem, um dia ela arvorou-se em contar, ela mesma, a história noturna. Isto foi uma desgraça para Pedro Paulo que mal conseguia articular uma frase inteira embora compreendesse tudo. O brilho da irmã o deixava ofuscado, sobretudo porque a sessão de histórias passou a ter, habitualmente, dois narradores: meu irmão e Marina. Esta, cada vez mais, se esmerava numa riqueza de detalhes e palavras que só faziam piorar a impotência do irmão. À medida que os dias passavam o pai percebeu que era grande a angustia de Pedro Paulo, emudecido diante da verborragia e competência da irmã. Estava arrasado, triste, humilhado e ofendido pelo handicap negativo que apresentava, incapaz que era de se igualar à irmã. Foi grande a preocupação de meu irmão: tinha que encontrar uma solução que pusesse fim ao sofrimento do filho, tirando-o daquele abatimento. E eis que naquela noite, depois de contar sua história ele cassou a palavra de Marina, declarando: hoje quem vai contar uma história é Pedro Paulo! Vai, meu filho, conta pra papai e pra Marina. Vai! Você sabe! Papai tem certeza que você sabe uma história linda! O rosto de Pedro Paulo iluminou-se de alegria ao sentir tanta confiança expressa pelo pai que adorava. Mas isto durou pouco. Só um segundo e ele se deu conta da imensa responsabilidade e da dificuldade do ato que lhe era delegado. O rosto desabou numa expressão de enorme sofrimento. A procura das palavras, o esforço para encontrá-las era desmedido. Em silêncio Marina e o pai esperam: ela com um ar condescendente que só fazia piorar o martírio do irmão e ele sofrendo pelo filho em desespero e já arrependido da solução que havia proposto. No momento em que já ia desobrigá-lo da tarefa imposta percebe que o rosto de Pedro Paulo começa a apresentar uma expressão de histriônico horror e ele se contorce puxando literalmente as palavras com a mãozinha apertando a boca. E, num tom cavernoso e dramático, em ritmo lento, dividindo as sílabas, ele solta A HISTÓRIA, com um poder de concisão que nada fica a dever a Descartes:
BANCA DE NEVE!  (pausa longa e dramática) MÔDADE!
Exausto e vitorioso ele se cala esperando a apreciação da platéia que, depois do silêncio causado pela reflexão que se impunha diante da profundidade e da contundente concisão do relato, aplaude freneticamente. Estava assim descrito todo o horror relatado pelos irmãos Grimm, em mais de mil palavras.

2009




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