Sempre
admirei a capacidade de síntese de que são dotadas algumas pessoas. Com
pouquíssimas palavras conseguem se fazer entender dizendo tudo que tem que ser
dito enquanto eu peno para reduzir a enxurrada de palavras que acaba por tornar
tudo confuso. Tenho pra mim que ser sintético é uma qualidade nata: não se
aprende. Nasce com a gente ou não. Síntese sempre me deu a sensação de certeza
e verdade. É quase impossível pregar mentiras sintéticas. Mentiras devem
sofrer, necessariamente, uma complexa elaboração para não deixar furos, embora
estes sempre terminem por se fazer presentes. O “penso, logo existo” de
Descartes é um dos exemplos clássicos de síntese. Contém um mundo em três
palavras. Livros inteiros foram escritos concordando, discordando ou comentando
esta afirmação. E ainda, aos milhares, existem os japoneses craques na arte da
síntese, com os seus maravilhosos haikais. Houve uma época em que
desesperadamente eu procurei criá-los com o esquema preconizado por Guilherme
de Almeida: o primeiro verso rimando com o terceiro e o segundo apresentando a
segunda sílaba em rima com a sétima. Os resultados que obtive foram patéticos
como atesta uma de minhas muitas tentativas:
O gato sonolento deu um mio
e no coração do avô
a sensação de imenso triste vazio
Tá legal, não precisam me dizer: gato com sono “dando” um mio
é uma lamentável construção, indigna de um rebento nipônico de quatro anos
(tenho para mim que quando começam a falar balbuciam haikais perfeitos). Vai
daí que o mio do gato que causou o vazio no avô encerrou o ciclo de minhas
infrutíferas tentativas me ficando como consolo o fato de que não tem o menor
sentido ficar fazendo versos japoneses quando não os faço nem à moda pátria. O
jeito foi continuar a morrer de inveja daqueles que conseguem ir direto ao
ponto. Entre estes, com louvor, situa-se meu único sobrinho Pedro Paulo que aos
pouco mais de dois anos foi capaz de uma proeza espantosa no terreno da
síntese. Meu irmão contava histórias para os filhos na hora de dormir. Marina,
um ano mais velha que Pedro Paulo, era uma matraca, quem sabe herdeira do DNA
da tia. Pois bem, um dia ela arvorou-se em contar, ela mesma, a história
noturna. Isto foi uma desgraça para Pedro Paulo que mal conseguia articular uma
frase inteira embora compreendesse tudo. O brilho da irmã o deixava ofuscado,
sobretudo porque a sessão de histórias passou a ter, habitualmente, dois
narradores: meu irmão e Marina. Esta, cada vez mais, se esmerava numa riqueza
de detalhes e palavras que só faziam piorar a impotência do irmão. À medida que
os dias passavam o pai percebeu que era grande a angustia de Pedro Paulo,
emudecido diante da verborragia e competência da irmã. Estava arrasado, triste,
humilhado e ofendido pelo handicap negativo que apresentava, incapaz que era de
se igualar à irmã. Foi grande a preocupação de meu irmão: tinha que encontrar
uma solução que pusesse fim ao sofrimento do filho, tirando-o daquele
abatimento. E eis que naquela noite, depois de contar sua história ele cassou a
palavra de Marina, declarando: hoje quem
vai contar uma história é Pedro Paulo! Vai, meu filho, conta pra papai e pra
Marina. Vai! Você sabe! Papai tem certeza que você sabe uma história linda! O
rosto de Pedro Paulo iluminou-se de alegria ao sentir tanta confiança expressa
pelo pai que adorava. Mas isto durou pouco. Só um segundo e ele se deu conta da
imensa responsabilidade e da dificuldade do ato que lhe era delegado. O rosto
desabou numa expressão de enorme sofrimento. A procura das palavras, o esforço
para encontrá-las era desmedido. Em silêncio Marina e o pai esperam: ela com um
ar condescendente que só fazia piorar o martírio do irmão e ele sofrendo pelo
filho em desespero e já arrependido da solução que havia proposto. No momento
em que já ia desobrigá-lo da tarefa imposta percebe que o rosto de Pedro Paulo
começa a apresentar uma expressão de histriônico horror e ele se contorce
puxando literalmente as palavras com a mãozinha apertando a boca. E, num tom
cavernoso e dramático, em ritmo lento, dividindo as sílabas, ele solta A
HISTÓRIA, com um poder de concisão que nada fica a dever a Descartes:
BANCA DE NEVE!
(pausa longa e dramática) MÔDADE!
Exausto e vitorioso ele se cala esperando a apreciação da
platéia que, depois do silêncio causado pela reflexão que se impunha diante da
profundidade e da contundente concisão do relato, aplaude freneticamente.
Estava assim descrito todo o horror relatado pelos irmãos Grimm, em mais de mil
palavras.
2009
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