Acordei
com uma zoeira não habitual. Parecia vir do prédio ao lado. Corri para o
escritório e abri a janela. O que eu vinha temendo, há já algum tempo, estava
acontecendo. A mangueira e o abacateiro que vinham se estranhado, estavam
passando da intenção à ação. Galhos de ambos, de uma forma grosseira, estavam
empenhados numa luta para ver quem conseguia entrar primeiro pela janela do
escritório. A mangueira, marota, havia produzido uma manga na ponta do galho
mais dianteiro, numa tentativa de me subornar. Isto enfureceu o abacateiro que,
mais ágil, passou a golpear a infeliz para fazê-la cair. Fiz que não vi. Como
tomar partido?
Minha
relação com as duas árvores era íntima e antiga. Quando nos conhecemos nenhuma
das duas havia se aproximado da janela e eu ainda conseguia ver o Cristo, agora
encoberto pela mangueira. A mangueira já era velha, o abacateiro mais jovem e
eu uma jovem senhora. Pelo rabo do olho acompanhei a disputa me perguntando o
porquê desta minha ligação tão forte com árvores. Fui interrompida por um
telefonema de minha neta informando que precisava urgente do Lego que constrói
um sítio. E o mistério das árvores se revelou: os fícus do sítio!
Era
seis, numa fileira que ia da janela da cozinha até as cocheiras. Já adulta os
vi ser abatidos. Estavam levantando com suas raízes, a casa, o paiol, o quarto
de arreios, as cocheiras. Quem sabe por vingança de minha ausência. Quase
chorei. Aquelas árvores haviam sido tudo em minha infância. Nelas eu subia para
escapar de qualquer coisa desagradável e ficava escondida entre os galhos
enquanto adultos ensandecidos gritavam meu nome. Impossível me localizar porque
elas eram da maior lealdade: sempre proviam um emaranhado de galhos onde eu me
colava abraçada sem que pudessem me ver. Mãe, tias e avó ficavam gritando em
vão, em tons ternos ou ameaçadores dependendo do locutor.
Mas
o que mais me encantava eram as raízes. Saindo da terra rugosas e fortes,
formavam desenhos incríveis. Ali construí meu mundo. Os espaços de terra por
elas delimitados eram para mim cidades, fazendas, ruas, estradas, casas e que
mais sei eu. Cada árvore era um país. A primeira, perto da cozinha, era o
Brasil, ou pelo menos era minha terra e os habitantes falavam português. A
segunda era a França onde só era permitido o francês. As outras quatro eram
paises encantados já que aos cinco anos meu mundo não ia além do Brasil e da
França. Numa delas – a terceira - as
raízes formavam uma mini-caverna onde eu guardava tesouros de valor
incalculável. Eram pequenos objetos surrupiados com maestria nas barbas dos
adultos.
O
mais extraordinário e poderoso era uma caixa de Euboldina. Achei o nome lindo
quando o escutei, receitado por um dos tios médicos que atendiam de graça, nos
meses de férias, num ambulatório improvisado perto da porteira. Vai daí que
irresistivelmente seduzida roubei uma caixa de amostra grátis. Pode nome mais
bonito? Decretei que tinha um efeito mágico: o de me tornar invisível. Era a
pura expressão da verdade. Ninguém conseguia me achar quando eu ingeria uma
cápsula. Por que eu o fazia! Euboldina, fui saber anos mais tarde, era remédio
para rins. Anjos da guarda devem existir: as cápsulas ingeridas não causaram
qualquer efeito negativo. Só mesmo a minha invisibilidade. Dei também para meu
cavalo – o primeiro que tive e que se chamava Coringa. E ele passou a
desaparecer como eu.
Euboldina
tinha outros atributos poderosos: se concentrada em seu nome, conseguia fazer
com que desistissem de me fazer comer espinafre e exorcizava diversos fantasmas
que habitavam a casa do sítio à noite. Era só pensar Euboldina e eles fugiam
com o rabo entre as pernas. Nunca mais
tive medo. Protegia também meu irmão, que só tinha um ano e que eu adorava. Se
ele chorava o poder de Euboldina fazia com que voltasse a sorrir. Não me lembro
se também ministrei este medicamento a ele. É bem provável. Mas como ocorreu
comigo nenhum dano foi verificado. Está ele por aqui firme e forte aos mais de
70!
O
som raivoso dos galhos em disputa me fez voltar ao presente. Estava ficando
feia a coisa. Iam acabar perdendo um galho como já estavam perdendo folhas.
Impossível continuar a fingir que não estava percebendo. Vai daí que pensei:
quem sabe? Fui até a janela e encarei as duas árvores com firmeza. Severa,
mesmo. Por um instante aquietaram-se esperando, quem sabe, que eu tomasse algum
partido. Olharam-me desconfiadas. Eu sempre tão afável parecia zangada. E
estava mesmo. Aquilo era jeito?! Foi ai que eu murmurei olhos nos galhos:
Euboldina. Surpresas, elas me encararam. Eu repeti firme: Euboldina! Encantada,
vi que se afastavam uma da outra, com delicadeza. A mangueira avançou a manga
em minha direção e com outro galho apontou para um projeto de abacate exibido
pelo outra. Sorriam ambas. Euboldina restabelecera a paz e a ordem com a mesma
eficiência de então. Não sei se ainda existe o remédio. Mas a velha magia de
seu nome, que não constava da bula, certamente ainda existe. Preciso pensar
Euboldina com mais freqüência, nos tempos que correm.
2005
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