Tudo
começou em 1898 com a morte do Bisavô. A trêfega Bisavó, que até então havia
reprimido esta qualificação, passou a exercê-la com brilhantismo. Era bela, a
senhora, ainda que mãe de oito filhos. Três já adultos, uma adolescente e
quatro ainda bem pequenos. O primogênito – dizem que mesmo antes da morte do
pai – se comportava mal mantendo um romance com senhora casada com conhecido
político da época.
O belo
rapaz era o preferido da mãe, já que feito à sua imagem. Vai daí que a
pecaminosa amante engravida. Até ai nada tão grave. Ainda não estavam na era do
DNA e o rebento bem poderia ter sido gerado pelo marido não fosse um pequeno
senão: o homem era estéril! E esta esterilidade era do conhecimento de toda
sociedade. O escândalo foi de grandes proporções ganhando as páginas de um
jornal. Para piorar passou-se o recibo: um dos tios do rapaz, irmão da Bisavó,
agride à bengaladas o jornalista responsável pelo maldoso artigo, em plena via
pública. Deu até processo e o estrago foi grande.
O pai
da pecadora providencia o registro da criança em nome do marido enganado, e
exige a permanência da filha sob o teto do próprio. Sabe-se lá por que o marido
concorda. Vai ver era louco por ela ou criar o bastardo como seu seria uma estranha
vingança. E as coisas se acomodaram, mas não por muito tempo.
A
Bisavó, para fugir do escândalo transferiu-se do Rio de Janeiro para Barbacena
com a filharada. Acobertando o horror financia a ida do filho pecador para a
França, acompanhado da adúltera que abandonou o marido levando o rebento
reconhecido como próprio. Por lá passaram a viver como nobres, nos arredores do
Parc Monceau, fausto este garantido por polpuda mesada enviada pela Bisavó. Por
aqui, ela não ficava atrás, esbanjando a fortuna que lhe havia sido legada pelo
Bisavô.
Multiplicavam-se
as recepções, as festas os saraus nos salões do casarão. A bela senhora era uma
“snob” assumida: preconceituosa, mandona, desdenhava de tudo e de todos. Vai
daí que ficar sem dinheiro era alguma coisa de inimaginável. E este estava se
esvaindo e iria acabar. Corajosa, ela parte para o supremo sacrifício: aceita
casar de um comerciante, já entrado em anos, um seu apaixonado desde muito, mas
sempre rejeitado. Comerciante! Uma “mésalliance” de peso! Mas fazer o que? Eram
sete filhos aqui e um com família em Paris!
Volta a
residir no Rio de Janeiro trazendo da França o primogênito agora já com três
filhos. Este, ao chegar, fica indignado com o casamento da mãe com aquele
grosseirão casca grossa sem berço, mas com eira e beira. Indignado passa a
visitar a mãe somente quando certo de não encontrar por lá o padrasto. Era um
rompimento! Um rompimento assaz estranho porque não só continuava a viver da
mesada fornecida pelo padrasto como deixa os três filhos a cargo da mãe e dele.
A esta
altura o comerciante é responsável pelo sustento da Bisavó e de mais onze! Um
santo, ele era. E também apaixonado pela Bisavó que o tratava com o maior
desprezo. A tragédia é que frente a seu nome não havia título algum: nem
Coronel, nem Doutor, nem nada. Um infamante “Seu” apenas. Um horror! Não fosse
a garantia de que a vida prosseguiria com festas e recepções, onde raramente
fazia-se presente o dono da casa, o sacrifício de um convívio íntimo com o
“Seu” seria desmedido. O homem nem falava francês!!
Para
horror da senhora um dos poucos amigos dele que freqüentava a casa, apaixona-se
por uma das filhas. E o homem era mulato!!! Abonado, excelente jurista, mas
mulato!!! Conta a história que a Bisavó visitada por uma amiga por ocasião do
noivado, dela escuta: então está tudo
leite e rosas! Ao que a Bisavó responde do alto de sua imponência: leite e rosa, não diria... café com leite
talvez. Pouco depois casa-se outra filha com um promissor médico. Esta era
a única que ainda coibia alguns excessos e gostos desmedidos da mãe.
E foi
ai que a Bisavó desarvorou de vez. O pobre comerciante se matava de trabalhar e
a fortuna que havia amealhado diminuía a uma razão espantosa. Ganhava bem, por
sorte, e assim podia manter os caprichos de sua tresloucada mulher. A crônica
familiar nega qualquer prevaricação da Bisavó Mas crônica familiar é sempre
dotada de extraordinária memória seletiva. O mal feito do primogênito podia ser
cometido e até relatado porque afinal era homem. E homens fazem isto. A
adúltera não era da família, portanto poderia ser enxovalhada com
tranqüilidade. Mas sobre a Bisavó não podiam ser feitas cogitações maldosas.
Dilapidar
fortunas não era infamante, sobretudo quando feito com bom gosto e finesse. Mas, cá pra mim, tenho dúvidas
sobre sua fidelidade ao “Seu”. Fotos me mostram uma bela mulher. As festas, as
recepções frequentadas por garbosos senhores sem a presença do marido; sua
personalidade sedutora e ávida; seu encanto pelas peripécias do filho são
indicadores de possíveis escapadas. Uma vez, adolescente, ousei levantar esta
dúvida. Fui repreendida com severidade: como
é que você pode sequer imaginar uma coisa destas! O difícil era não
imaginar!
Por
sorte a Bisavó morre antes do “Seu” usufruindo até o fim de todas as benesses
que um bom faturamento mensal garantia. Foi assim que a herança escafedeu-se. E
é por artes da Bisavó que cento e dezoito anos depois me vejo pensionista do
INSS olhando num álbum as fotos de casarões, de festas, de recepções e até da
adúltera que me levou parte da fortuna que poderia, sem as artes da Bisavó, ter
chegado até mim.
2005
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