quinta-feira, agosto 22, 2013

CINQUENTA ANOS ME CONTEMPLAM

Sei lá o que os soldados de Napoleão sentiram ao ouvir que séculos os contemplavam das pirâmides. Mas sei de minha emoção causada pelos cinqüenta anos que me contemplavam do caderno de receitas, amarelado pelo tempo. Procurava eu uma receita de rabanada de minha avó e encontrei a de Lutefisk! A letra é de Elsie. O ano 1960. Salvador, Baia. Tínhamos trinta anos: Maria Helena, Elsie e eu e, entre nós, oito filhos: quatro meninas e quatro meninos.
O equilíbrio parava por ai. No mais éramos muito diferentes. Elsie, filha de noruegueses, casada com filho de ingleses (em casa dela falava-se três línguas); eu casada com um filho de franceses (em casa falava-se duas); e Maria Helena, que era de origem guarani. As crianças pela convivência que só não ocorria quando dormiam, falavam (mal) todas essas línguas.
Nossos maridos haviam se pirulitado para os Estados Unidos em busca de aviões por lá comprados pela Aeronáutica. Eram eles capitães aviadores. Nós, as esposas, éramos olhadas com reservas pelas demais senhoras da Base Aérea. E, o fato de termos decidido entusiasticamente pela alegria de um Natal Norueguês, sob a batuta de Elsie, ao invés verter lágrimas pela ausência dos maridos, só acresceu na desconfiança de que éramos muito mal procedidas.
O tal Natal Norueguês começou um mês antes pela fabricação dos enfeites da árvore e preparo de uns estranhíssimos biscoitos de pimenta do reino!  Estes, em forma de bonecos, eram também destinados a enfeitar a árvore junto a origamis noruegueses e guirlandas de pipocas. As crianças tomavam parte nesta produção, devorando os enfeites e provocando uma confusão espantosa. Mesmo assim a coisa foi tomando forma e uma linda e enorme árvore começou a surgir no canto da sala de minha casa, escolhida para evento por ser de frente para o mar.
Os vizinhos (morávamos em casas da FAB na praia de Ondina) demonstraram por expressões e até por palavras cuidadosamente maldosas, sua reprovação diante do entusiasmo que nos invadira quando deveríamos estar arrasadas pela ausência dos cônjuges. Mal sabiam eles que até havíamos pensado em convidar os poucos oficiais solteiros para nossa “norke juletre” (árvore de natal norueguesa). Isto só não ocorreu porque era economicamente inviável: seriamos o dobro de convivas e o dinheiro era curto. Os pobres tiveram que se contentar com o peru sem gosto do Cassino de Oficiais com isto nos livrando de mais este escândalo.
A discussão do cardápio provocou momentos de terror ao nos ser informado por Elsie que o prato principal – o tal do Lutefisk – consistia em um peixe temperado com soda cáustica! O preparo levava cerca de dez dias que nos pareceram uma subida lenta para o cadafalso. Mas fazer o quê? Estávamos tão comprometidas com espírito natalino escandinavo que até a soda caustica tornou-se palatável. Muito estranho também foi o banimento de Papai Noel, substituído por um gnomo chamado Fjøsnisse que, ao contrário do bom velhinho, era muito mal humorado e malcriado e que se esconderia na garagem (a falta de celeiro norueguês) onde as crianças deveriam servi-lo com lauto prato de comida. Caso contrário acabaria com a festa. Entre as sobremesas uma espécie de bolo – Lukket Valnafat – recheado de prendas que vaticinavam o futuro para quem fosse agraciado com fatia que as contivesse.
E eis que chega a grande noite. As crianças enlouquecidas apalpavam os embrulhos que formavam uma pirâmide descomunal em baixo da árvore. Avós e tios haviam enviado do Sul Maravilha uma espantosa quantidade de presentes que pelas regras norueguesas só poderiam ser abertos depois da ceia. Possuídas de um riso nervoso (misto de medo e encantamento) as crianças, em procissão foram servir o gnomo. Alguns disseram que viram a sombra dele atrás do carro! Minha filha até ouviu o risinho dele.
Sobrevivemos à soda caustica e a uma absurda quantidade pimenta do reino, isto tudo regado com aquavit enviado pelos pais de Elsie. Aos gritos iniciamos a abertura dos presentes. O pandemônio instalado pelas crianças e seus novos brinquedos nos catapultou para varanda não sem antes esvaziar o prato do gnomo para comprovar sua existência.
A noite estava linda e o mar brilhava no escuro. Conversávamos aos gritos até que de repente percebemos o silêncio. Na sala, espalhados em sofás e poltronas as crianças dormiam vigiadas por Diaque, meu cão boxer que fazia parte do bando. Voltamos à varanda e uma imensa sensação de felicidade nos invadiu. Maria Helena verbalizou: pode noite mais gostosa? Nossa concordância foi muda. Estava tão bom que nem dava para falar. E ficamos no silêncio que só grandes amigos suportam sem constrangimento.
De repente fomos tiradas deste nirvana pela voz da vizinha que por cima do muro nos desejava um Feliz Natal. A voz era carregada de pesar: sei que para vocês está muito triste e têm razão para isto. Estou com muita pena mesmo. Sem saber o que falar culpadas pela felicidade que nos havia invadido, Elsie e eu ficamos mudas. Maria Helena tentou refutar: mas nós não estamos... e interrompeu a frase tomada por um aceso incontrolável de riso ao qual nos juntamos. Rimos até as lágrimas, riso este que recrudesceu ao escutarmos o marido (um major) declarar em alto e bom som: estas criaturas estão bêbadas!
Pouco tempo depois transferências nos separaram. Vimo-nos depois de raro em raro até que nunca mais. Mas deste caderno de receita me contemplam coloridos, lindos e nítidos os rostos de Elsie, Maria Helena, Johnny, Didi, Ian, Karen, Rosane, Rosângela, Rogério e Dora. Uma coisa é certa, neste Natal vou tomar aquavit!       

2010


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