Sei
lá o que os soldados de Napoleão sentiram ao ouvir que séculos os contemplavam
das pirâmides. Mas sei de minha emoção causada pelos cinqüenta anos que me
contemplavam do caderno de receitas, amarelado pelo tempo. Procurava eu uma
receita de rabanada de minha avó e encontrei a de Lutefisk! A letra é de Elsie.
O ano 1960. Salvador, Baia. Tínhamos trinta anos: Maria Helena, Elsie e eu e,
entre nós, oito filhos: quatro meninas e quatro meninos.
O
equilíbrio parava por ai. No mais éramos muito diferentes. Elsie, filha de
noruegueses, casada com filho de ingleses (em casa dela falava-se três
línguas); eu casada com um filho de franceses (em casa falava-se duas); e Maria
Helena, que era de origem guarani. As crianças pela convivência que só não
ocorria quando dormiam, falavam (mal) todas essas línguas.
Nossos
maridos haviam se pirulitado para os Estados Unidos em busca de aviões por lá
comprados pela Aeronáutica. Eram eles capitães aviadores. Nós, as esposas,
éramos olhadas com reservas pelas demais senhoras da Base Aérea. E, o fato de
termos decidido entusiasticamente pela alegria de um Natal Norueguês, sob a batuta
de Elsie, ao invés verter lágrimas pela ausência dos maridos, só acresceu na
desconfiança de que éramos muito mal procedidas.
O
tal Natal Norueguês começou um mês antes pela fabricação dos enfeites da árvore
e preparo de uns estranhíssimos biscoitos de pimenta do reino! Estes, em forma de bonecos, eram também
destinados a enfeitar a árvore junto a origamis noruegueses e guirlandas de
pipocas. As crianças tomavam parte nesta produção, devorando os enfeites e
provocando uma confusão espantosa. Mesmo assim a coisa foi tomando forma e uma
linda e enorme árvore começou a surgir no canto da sala de minha casa,
escolhida para evento por ser de frente para o mar.
Os
vizinhos (morávamos em casas da FAB na praia de Ondina) demonstraram por
expressões e até por palavras cuidadosamente maldosas, sua reprovação diante do
entusiasmo que nos invadira quando deveríamos estar arrasadas pela ausência dos
cônjuges. Mal sabiam eles que até havíamos pensado em convidar os poucos
oficiais solteiros para nossa “norke
juletre”
(árvore de natal norueguesa). Isto só não ocorreu porque era economicamente
inviável: seriamos o dobro de convivas e o dinheiro era curto. Os pobres
tiveram que se contentar com o peru sem gosto do Cassino de Oficiais com isto nos
livrando de mais este escândalo.
A
discussão do cardápio provocou momentos de terror ao nos ser informado por
Elsie que o prato principal – o tal do Lutefisk – consistia em um peixe
temperado com soda cáustica! O preparo levava cerca de dez dias que nos
pareceram uma subida lenta para o cadafalso. Mas fazer o quê? Estávamos tão
comprometidas com espírito natalino escandinavo que até a soda caustica
tornou-se palatável. Muito estranho também foi o banimento de Papai Noel,
substituído por um gnomo chamado Fjøsnisse
que, ao contrário do bom velhinho, era muito mal humorado e malcriado e que se
esconderia na garagem (a falta de celeiro norueguês) onde as crianças deveriam
servi-lo com lauto prato de comida. Caso contrário acabaria com a festa. Entre
as sobremesas uma espécie de bolo – Lukket Valnafat – recheado de prendas que
vaticinavam o futuro para quem fosse agraciado com fatia que as contivesse.
E
eis que chega a grande noite. As crianças enlouquecidas apalpavam os embrulhos
que formavam uma pirâmide descomunal em baixo da árvore. Avós e tios haviam
enviado do Sul Maravilha uma espantosa quantidade de presentes que pelas regras
norueguesas só poderiam ser abertos depois da ceia. Possuídas de um riso
nervoso (misto de medo e encantamento) as crianças, em procissão foram servir o
gnomo. Alguns disseram que viram a sombra dele atrás do carro! Minha filha até
ouviu o risinho dele.
Sobrevivemos
à soda caustica e a uma absurda quantidade pimenta do reino, isto tudo regado
com aquavit enviado pelos pais de Elsie. Aos gritos iniciamos a abertura dos
presentes. O pandemônio instalado pelas crianças e seus novos brinquedos nos
catapultou para varanda não sem antes esvaziar o prato do gnomo para comprovar
sua existência.
A
noite estava linda e o mar brilhava no escuro. Conversávamos aos gritos até que
de repente percebemos o silêncio. Na sala, espalhados em sofás e poltronas as
crianças dormiam vigiadas por Diaque, meu cão boxer que fazia parte do bando.
Voltamos à varanda e uma imensa sensação de felicidade nos invadiu. Maria
Helena verbalizou: pode noite mais
gostosa? Nossa concordância foi
muda. Estava tão bom que nem dava
para falar. E ficamos no silêncio que só grandes amigos suportam sem
constrangimento.
De
repente fomos tiradas deste nirvana pela voz da vizinha que por cima do muro
nos desejava um Feliz Natal. A voz era carregada de pesar: sei que para vocês está muito triste e têm razão para isto. Estou com
muita pena mesmo. Sem saber o que falar culpadas pela felicidade que nos
havia invadido, Elsie e eu ficamos mudas. Maria Helena tentou refutar: mas nós não estamos... e interrompeu a
frase tomada por um aceso incontrolável de riso ao qual nos juntamos. Rimos até
as lágrimas, riso este que recrudesceu ao escutarmos o marido (um major)
declarar em alto e bom som: estas
criaturas estão bêbadas!
Pouco
tempo depois transferências nos separaram. Vimo-nos depois de raro em raro até
que nunca mais. Mas deste caderno de receita me contemplam coloridos, lindos e
nítidos os rostos de Elsie, Maria Helena, Johnny, Didi, Ian, Karen, Rosane, Rosângela, Rogério e Dora. Uma coisa é certa, neste Natal vou tomar aquavit!
2010
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