domingo, agosto 04, 2013

TEM DISCUSSÃO, NÃO!

A discussão sobre o momento atual corria solta entre nós amigos. Que a coisa estava feia todos concordávamos. A discordância se dava quanto aos motivos que levavam a tanto descalabro. Incompetência, má fé, despreparo, desonestidade, individualismo, ganância e, que mais sei eu,  apontados como os principais causadores. Eis que um dos mais inflamados declarou: “inexiste critério”! Ao escutar estas palavras engreno uma marcha à ré para o já faz tempo.
A agradável cobertura na Lagoa transforma-se no agreste de Sergipe, sol castigando as barracas de um acampamento de Sem Terras e eu escuto minha voz esclarecendo o motivo de nossa presença ali. Coisa esta inteiramente desnecessária porque eles estavam carecas de saber, informados que haviam sido de nossa missão pela direção central do Movimento. Mas havia um cerimonial a cumprir, um protocolo estabelecido que tornava necessária a autorização do líder do acampamento. Esta autorização de praxe nos permitiria preencher o questionário sobre o histórico daquele conflito agrário. Este proceder funcionava como um reconhecimento do status do líder e de seu poder de decisão.
Sentados no chão, ao lado das barracas formávamos um circulo. Nós e os titulares do Conselho do Acampamento, liderado por Seu Joviano. Também, como de praxe, só a ele nos dirigíamos sendo nossas palavras por ele “traduzidas” aos demais que, vez por outra, se manifestavam sobre algum ponto sendo também suas palavras “traduzidas” para nosso uso. Este era um processo demorado, mas de lei. Obtida a autorização começamos a formular as perguntas que nos permitiam reconstituir a história do grupamento desde sua formação até os dias atuais. Ao criar o questionário havíamos tido a preocupação de nunca individualizar as perguntas e de não identificar pessoas. O coletivo era nosso alvo e para eles, também, o que mais importava.
Mas naquele dia um fato extraordinário ocorreu. No momento em que indagávamos sobre quantidades (de pessoas e de famílias) surgiu uma discordância entre os participantes: uns afirmavam existirem 47 pessoas e outros 45. Aguardamos, pacientes, a tradução de Seu Joviano: 47 ou 45? E ele numa voz grave, carregada do que nos pareceu sofrimento, declara. “Em hoje 47, em amanhã 45”. Entreolhamo-nos preocupados. Havíamos de há muito aprendido que nunca, mas nunca mesmo, deveríamos fugir do questionário formulando perguntas que dele não constavam.
Aqui é preciso que se esclareça que o teor do questionário já era do conhecimento do grupamento já que enviado, antecedendo nossa visita, pela Central do  Movimento a todos os conflitos que visitávamos. Eles se comportavam como se o desconhecessem e nós como se não soubéssemos que conheciam. Esta postura fazia parte do cerimonial.
Mas aquele sumiço de duas pessoas da noite para o dia exigia um esclarecimento. Estavam doentes? Iriam morrer com data marcada? Iriam abandonar o Movimento? Um silêncio pesado se estabelece e, para aumentar nossa surpresa, um dos membros do Conselho levanta-se e abandona a roda com um “sua licença”, lançado na direção de Seu Joviano. Este apenas balança a cabeça concordando com a deserção.
Numa voz grave e triste Seu Joviano aponta com o queixo para as costas que se afastam: “duas das filha dele vai ser expulsa hoje à noite”. Assistimos então a um balançar concordante das cabeças dos demais membros. Esquecidos de todas as prudências metemos o bedelho no que não devíamos: como expulsas?! Que falta tão grande haviam cometido para ser deixadas para trás no momento em que estava tão perto a posse daquela terra pela qual que tanto lutaram? Não haveria outra solução? Um pedido de desculpas público por algum mal feito, quem sabe?
De repente nos demos conta da impropriedade de nossa conduta e calamo-nos culpados. Peço desculpas a seu Joviano, em nome de todos. Ele consulta com os olhos os demais membros e após um novo balançar de cabeças coletivo, segue-se a espantosa declaração numa voz firme mas carregada de enorme tristeza: “tem discussão, não! As moça tava dando sem critério!
Até hoje ignoro quais os critérios estabelecidos para a realização correta de ação tão humana e tão raramente regulamentada. Não nos foi dito e tivemos o bom gosto e a prudência de não perguntar.
Embora triste com a severidade da pena imposta às moças,  tenho que admitir que seria maravilhoso se as lideranças constituídas neste País agissem como Seu Joviano e, mesmo abatidas e desoladas na tristeza de punir um amigo, declarassem firmes ao constatarem descumprimento de critério, norma ou lei: tem discussão, não!

2008



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