Ainda que nascido sob o advento do Ventre Livre ele
foi um dos presentes de casamento, ofertados a minha avó, pelo sogro! Nós, as
crianças, o chamávamos Seu Davi, conferindo-lhe a senhoria, o que era muito
estranho. Por que, contrariando os costumes da época, isto nunca nos foi
exigido para o tratamento dado a qualquer membro da família: bisavô, avó, pais
e tios eram por nós tratados de “você”. Mas foi-nos determinado que Davi
Pereira de São Lázaro deveria ser tratado por “senhor”! Pereira porque filho de
escravos desta família; São Lázaro por ter nascido na data do santo. Do Davi
não sei a origem, mas certamente foi escolha de meu bisavô (Vovô de Barba ou
Vovô de Uva, como eu o chamava).
Muitos e muitos anos depois a atribuição de nomes passou
a ser de minha avó. Inúmeras vezes a observei exercendo este direito de
nomeação quando da comunicação dos recém pais: mais um(a) criadinho(a) às
ordens. Como a senhora quer o nome? Mas voltando a Seu Davi: nós o
adorávamos. Hoje vendo as fotos já não parece ser o gigante poderoso que me
protegia contra todo e qualquer mal. Em público eu era por ele tratada de
Sinhaninha; intramuros, de Capetinha.
Um de meus mal feitos que justificava o apelido era pedir
que me trouxesse um copo d’água sempre que visitas apareciam na sala de minha
avó: ele executava a “ordem” com perfeição, trazendo o copo numa bandeja de
prata, curvando-se respeitosamente enquanto eu bebia majestosamente e depois concedia
um agradecimento. Assim que as visitas saíam, ele, furioso, me recriminava: quando quiser beber água, Capetinha, vá
buscar com seus pezinhos. Já se viu! Não foi assim que nós educamos nossos
filhos!
O possessivo se
aplicava a tudo e a todos: as pratas do “nosso” casamento (que ele fazia
brilhar chegando a doer nos olhos); “nossos” empregados (sobre os quais exercia
uma terrível tirania); e nós, as crianças, os “nossos netos”. Apoderara-se da
família como se dele fosse. Seu Davi era analfabeto e havia resistido a toda e
qualquer tentativa de aprendizado. Mas, aos domingos, enfarpelava-se e munido
do Jornal do Comércio, empreendia uma viagem de bonde do Largo dos Leões ao
centro da cidade, fingindo ler.
Era um extraordinário mordomo/copeiro: a mesa posta e
servida à francesa por Seu Davi era um primor!
Nós, crianças, com ele aprendemos a assim ser servidos. E, nesta mesa,
diariamente nos deliciávamos com um de seus extraordinários comportamentos,
este motivado por não aprovar o casamento de uma de “nossas filhas” com um
“nosso genro”. Ao servir este “nosso genro” Seu Davi, invariável e
propositadamente, esbarrava em seu ombro! Este incidente era ansiosamente
aguardado pelos demais membros da família que voltavam os olhos para o ofendido
assim que dele Seu Davi se aproximava. Esta manobra repetia-se muitas vezes,
sempre seguida de um ligeiro franzir de testa de minha avó que nunca verbalizou
qualquer censura. Mesmo porque as reservas dela ao “nosso genro” eram as
mesmas! Mas não parava por ai: ao trazer as lavandas, a do infeliz genro era
sempre a última ser depositada, subvertendo a ordem e sempre trazida após um
intervalo calculadamente longo. Criava assim um suspense: viria ou não?
Minha avó e Seu Davi tinham um único ponto de
discordância e este era seriíssimo deixando ambos muito irritados e belicosos
quando vinha à baila. E vinha a baila a troco de tudo: qual dos dois era o mais
velho? Era certo que apenas um ano os separava, mas a dúvida, nunca
esclarecida, era quem havia nascido primeiro. Farpas, indiretas, ironias e
insinuações eram trocadas constantemente. Nunca tivemos coragem de tomar
partido embora isto nos fosse enfaticamente solicitado por ambos.
No mais concordavam em tudo. Inclusive quando a
impropriedade de um incidente que ele repetidamente me contava alertando-me
para que nunca, mas nunca mesmo, me comportasse como o havia feito minha mãe -
Sa Verinha - como ele a chamava. Ao que parece, escoltada por Seu Davi, ela me
empurrava num carrinho demandando a casa de uma de suas irmãs – minha madrinha.
Tinha eu seis meses e ela, (horror dos horrores!) havia trocado minha fralda em
plena rua!!! Este inconveniente, imoral e despropositado ato foi comunicado à
minha avó com um pedido de reprimenda enérgica, que foi prontamente atendido.
Afinal tinham minha avó e ele os mesmos códigos e valores! E ele me dizia: não se troca a fralda de uma moça na rua!
E vinha a invariável frase: não foi assim
que educamos nossos filhos! Isto marcou, por que nunca o fiz! Parecia-me
que se o fizesse ele se materializaria me chamando de capeta e denunciando-me a
minha avó.
Ainda hoje o escuto, sempre que apronto alguma. No dia em
que se foi, sua condição de livre e igual foi atestada pelas palavras de minha
avó, que pela primeira vez e numa extraordinária e nunca mais vista exceção,
deixou-se flagrar chorando em desespero: hoje,
perdi meu maior e grande amigo... e era
apenas um ano mais velho do que eu! E porque nunca mais seria sentido no
casarão o cheiro de café torrado e moído na hora, trazendo aquela sensação de
conforto e proteção, “nossos filhos”, “nossos netos” e até “nossos genros” se
perceberam órfãos.
2007
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