sexta-feira, agosto 09, 2013

VENTRE LIVRE

          Ainda que nascido sob o advento do Ventre Livre ele foi um dos presentes de casamento, ofertados a minha avó, pelo sogro! Nós, as crianças, o chamávamos Seu Davi, conferindo-lhe a senhoria, o que era muito estranho. Por que, contrariando os costumes da época, isto nunca nos foi exigido para o tratamento dado a qualquer membro da família: bisavô, avó, pais e tios eram por nós tratados de “você”. Mas foi-nos determinado que Davi Pereira de São Lázaro deveria ser tratado por “senhor”! Pereira porque filho de escravos desta família; São Lázaro por ter nascido na data do santo. Do Davi não sei a origem, mas certamente foi escolha de meu bisavô (Vovô de Barba ou Vovô de Uva, como eu o chamava).

            Muitos e muitos anos depois a atribuição de nomes passou a ser de minha avó. Inúmeras vezes a observei exercendo este direito de nomeação quando da comunicação dos recém pais: mais um(a) criadinho(a) às ordens. Como a senhora quer o nome? Mas voltando a Seu Davi: nós o adorávamos. Hoje vendo as fotos já não parece ser o gigante poderoso que me protegia contra todo e qualquer mal. Em público eu era por ele tratada de Sinhaninha; intramuros, de Capetinha.            
                              
            Um de meus mal feitos que justificava o apelido era pedir que me trouxesse um copo d’água sempre que visitas apareciam na sala de minha avó: ele executava a “ordem” com perfeição, trazendo o copo numa bandeja de prata, curvando-se respeitosamente enquanto eu bebia majestosamente e depois concedia um agradecimento. Assim que as visitas saíam, ele, furioso, me recriminava: quando quiser beber água, Capetinha, vá buscar com seus pezinhos. Já se viu! Não foi assim que nós educamos nossos filhos!

             O possessivo se aplicava a tudo e a todos: as pratas do “nosso” casamento (que ele fazia brilhar chegando a doer nos olhos); “nossos” empregados (sobre os quais exercia uma terrível tirania); e nós, as crianças, os “nossos netos”. Apoderara-se da família como se dele fosse. Seu Davi era analfabeto e havia resistido a toda e qualquer tentativa de aprendizado. Mas, aos domingos, enfarpelava-se e munido do Jornal do Comércio, empreendia uma viagem de bonde do Largo dos Leões ao centro da cidade, fingindo ler.

            Era um extraordinário mordomo/copeiro: a mesa posta e servida à francesa por Seu Davi era um primor!  Nós, crianças, com ele aprendemos a assim ser servidos. E, nesta mesa, diariamente nos deliciávamos com um de seus extraordinários comportamentos, este motivado por não aprovar o casamento de uma de “nossas filhas” com um “nosso genro”. Ao servir este “nosso genro” Seu Davi, invariável e propositadamente, esbarrava em seu ombro! Este incidente era ansiosamente aguardado pelos demais membros da família que voltavam os olhos para o ofendido assim que dele Seu Davi se aproximava. Esta manobra repetia-se muitas vezes, sempre seguida de um ligeiro franzir de testa de minha avó que nunca verbalizou qualquer censura. Mesmo porque as reservas dela ao “nosso genro” eram as mesmas! Mas não parava por ai: ao trazer as lavandas, a do infeliz genro era sempre a última ser depositada, subvertendo a ordem e sempre trazida após um intervalo calculadamente longo. Criava assim um suspense: viria ou não?

            Minha avó e Seu Davi tinham um único ponto de discordância e este era seriíssimo deixando ambos muito irritados e belicosos quando vinha à baila. E vinha a baila a troco de tudo: qual dos dois era o mais velho? Era certo que apenas um ano os separava, mas a dúvida, nunca esclarecida, era quem havia nascido primeiro. Farpas, indiretas, ironias e insinuações eram trocadas constantemente. Nunca tivemos coragem de tomar partido embora isto nos fosse enfaticamente solicitado por ambos.


            No mais concordavam em tudo. Inclusive quando a impropriedade de um incidente que ele repetidamente me contava alertando-me para que nunca, mas nunca mesmo, me comportasse como o havia feito minha mãe - Sa Verinha - como ele a chamava. Ao que parece, escoltada por Seu Davi, ela me empurrava num carrinho demandando a casa de uma de suas irmãs – minha madrinha. Tinha eu seis meses e ela, (horror dos horrores!) havia trocado minha fralda em plena rua!!! Este inconveniente, imoral e despropositado ato foi comunicado à minha avó com um pedido de reprimenda enérgica, que foi prontamente atendido. Afinal tinham minha avó e ele os mesmos códigos e valores! E ele me dizia: não se troca a fralda de uma moça na rua! E vinha a invariável frase: não foi assim que educamos nossos filhos! Isto marcou, por que nunca o fiz! Parecia-me que se o fizesse ele se materializaria me chamando de capeta e denunciando-me a minha avó.    

            Ainda hoje o escuto, sempre que apronto alguma. No dia em que se foi, sua condição de livre e igual foi atestada pelas palavras de minha avó, que pela primeira vez e numa extraordinária e nunca mais vista exceção, deixou-se flagrar chorando em desespero: hoje, perdi meu maior e grande amigo...  e era apenas um ano mais velho do que eu! E porque nunca mais seria sentido no casarão o cheiro de café torrado e moído na hora, trazendo aquela sensação de conforto e proteção, “nossos filhos”, “nossos netos” e até “nossos genros” se perceberam órfãos.  

2007


Nenhum comentário:

Postar um comentário