segunda-feira, agosto 19, 2013

A BELEZA DA EXCEÇÃO ou SAUDADES DE D. HELDER

Não consigo fugir da duplicidade do título. Atribuí um, depois outro, e percebi que o certo seria valer-me dos dois. Nestes últimos tempos em que vi excomungada uma equipe médica que cumpriu com seu dever, e com a Lei, me dei conta de que para a religião católica não existe a possibilidade de exceção. Pouco sei sobre as outras religiões para generalizar minha descoberta atribuindo a todas elas este estranho fenômeno. Fenômeno, sim. E dos maiores.
Exceção existe em tudo e em todos. Mesmo no Dura Lex, Sede Lex, as exceções ocorrem. Caso não ocorressem, desnecessários seriam os magistrados que interpretam a Lei aplicando-a com bom senso e inteligência, de acordo com as circunstâncias em que fatos ocorrem. Exceções existem de montão na natureza e no ser humano, ambos criados por Deus, segundo a Igreja. Não admiti-la é absurdo e desumano, como no caso da menina de nove anos estuprada pelo padrasto. Não discuto a posição oficial da Igreja contra o aborto. É lá uma Lei dela e deve ter sua razão de ser. Mas esta Lei não admite exceções? Nenhuma? Isto me parece absurdo. Mais do que isto parece uma incoerência. Por que o “não matarás dos 10 Mandamentos (de onde, me parece, se origina a proibição do aborto) não é aplicado às guerras que eliminam milhões de homens, mulheres e crianças? Por que não são excomungados os que as promovem ou os que delas participam? É uma exceção ou não é?
O desumano pronunciamento do Arcebispo de Recife é um tanto sem pé nem cabeça, não é não? E ai vocês devem estar se perguntando: onde entra D. Helder nesta história? Além da coincidência de ter sido, também ele, Arcebispo de Olinda e Recife, foi uma das pessoas mais humanas que conheci. Muito amigo de meu pai tive o privilégio de conversar com ele muitas vezes.
Fui educada na religião católica, mas não me tornei uma. Não cabe aqui comentar por que deixei de sê-lo. Mas me encantava ouvir D. Helder dela falar. Nele, a religião católica era verdadeiramente a do perdão, a da compreensão, a da aceitação, a da compaixão, a da caridade, nas acepções mais bonitas que possam ter estas palavras. Humano ele era e porque tão humano tinha algo de divino.
Lembro-me da última vez que o visitei em Recife, como sempre o fazia quando lá ia a trabalho. O cafezinho, naquela casinha nos fundos da Igreja das Fronteiras, era de lei. Pouco tempo depois ele morreu e me fez falta. Faz muita falta a este País, como vejo agora. Desta última vez que o vi contou-me uma história deliciosa que com ele havia ocorrido nos anos de chumbo. Lembro-me de que ri muito e só depois percebi que o riso fácil era uma avaliação menor para o ocorrido. A história é tão linda que nem sei! Não faz rir, não. Faz pensar o quanto havia de grande e humano naquele homem frágil, de voz tão mansa.
Mas vamos ao relato e vocês julgam: naquela época tão sofrida dos anos que se seguiram a 1969, D. Helder era uma figura preocupante. Como enfrentá-lo? Confinado à sua Arquidiocese a “gloriosa” tinha a maior dificuldade em fazê-lo calar-se. Os olhos do mundo estavam sobre ele e uma repressão maior que o confinamento teria conseqüências funestas para o Governo. Havia um pavor de que qualquer agressão a ele dirigida pudesse ser atribuída à truculência dos militares. E estes deliravam temendo que um atentado “terrorista” fosse engendrado para incriminá-los. Da mesma forma, os admiradores de D. Helder temiam por alguma agressão destes mesmos militares. Isto fazia com que qualquer deslocamento do Arcebispo fosse acompanhado por carros das duas facções visando garantir e proteger sua integridade física. Isto incomodava D. Helder que adorava andar a pé pelas ruas do Recife e gostava de fazê-lo com liberdade.
Naquela mesma época o Prefeito resolveu, a bem da ordem e dos bons costumes, banir as prostitutas da cidade, transferindo-as para uma periferia longínqua. Apavoradas com a possível redução da clientela que lhes garantia o sustento, foram procurar D. Helder para que intercedesse a seu favor.  O que ele prontamente fez conseguindo que fosse sustada a medida, convencido de que “esconder o sofá” não resolveria o grave problema social.
Pois bem, num de seus passeios a pé, D. Helder desesperado com a perseguição dos dois carros, deu uma de esperto. Enveredou-se por uma ruela à qual os carros não poderiam ter acesso. Só depois de andar alguns metros é que se deu conta de que estava em pleno baixo meretrício. Prostitutas em portas, janelas e sacadas, quase nuas, ajoelhavam-se à sua passagem pedindo benção, que ele foi ministrando à direita e à esquerda, apertando o passo para dali sair o mais rápido possível antes que algum repórter surgindo do nada registrasse o inusitado episódio que faria a festa de jornais do mundo inteiro. Já quase no meio da rua, de uma das sacadas veio o grito entusiasmado e comovido: Viva D. Helder, o bispo das Putas! E a rua explode em palmas e vivas. Abençoando cada vez mais rápido, quase correndo, ele se foi.
E sorrindo me contou o acontecido. Bonito, não? É o que faria Cristo, acho, na mesma situação. Mas certamente não é o que faria o atual Arcebispo. E isto provavelmente se deve ao fato dele não conhecer o Filho de Deus tão intimamente quanto D. Helder conhecia. E, porque não o conhecia não aprendeu que perceber as exceções, e tratá-las como tal, é um ato humano, bonito, inteligente e, sobretudo, cristão.

2012

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