Não consigo fugir da duplicidade do título. Atribuí um,
depois outro, e percebi que o certo seria valer-me dos dois. Nestes últimos tempos
em que vi excomungada uma equipe médica que cumpriu com seu dever, e com a Lei,
me dei conta de que para a religião católica não existe a possibilidade de
exceção. Pouco sei sobre as outras religiões para generalizar minha descoberta
atribuindo a todas elas este estranho fenômeno. Fenômeno, sim. E dos maiores.
Exceção existe em tudo e em todos. Mesmo no Dura Lex, Sede
Lex, as exceções ocorrem. Caso não ocorressem, desnecessários seriam os
magistrados que interpretam a Lei aplicando-a com bom senso e inteligência, de
acordo com as circunstâncias em que fatos ocorrem. Exceções existem de montão
na natureza e no ser humano, ambos criados por Deus, segundo a Igreja. Não
admiti-la é absurdo e desumano, como no caso da menina de nove anos estuprada
pelo padrasto. Não discuto a posição oficial da Igreja contra o aborto. É lá
uma Lei dela e deve ter sua razão de ser. Mas esta Lei não admite exceções?
Nenhuma? Isto me parece absurdo. Mais do que isto parece uma incoerência. Por
que o “não matarás” dos 10 Mandamentos (de onde, me parece, se
origina a proibição do aborto) não é aplicado às guerras que eliminam milhões
de homens, mulheres e crianças? Por que não são excomungados os que as promovem
ou os que delas participam? É uma exceção ou não é?
O desumano pronunciamento do Arcebispo de Recife é um tanto
sem pé nem cabeça, não é não? E ai vocês devem estar se perguntando: onde entra
D. Helder nesta história? Além da coincidência de ter sido, também ele,
Arcebispo de Olinda e Recife, foi uma das pessoas mais humanas que conheci.
Muito amigo de meu pai tive o privilégio de conversar com ele muitas vezes.
Fui educada na religião católica, mas não me tornei uma. Não
cabe aqui comentar por que deixei de sê-lo. Mas me encantava ouvir D. Helder
dela falar. Nele, a religião católica era verdadeiramente a do perdão, a da
compreensão, a da aceitação, a da compaixão, a da caridade, nas acepções mais
bonitas que possam ter estas palavras. Humano ele era e porque tão humano tinha
algo de divino.
Lembro-me da última vez que o visitei em Recife, como sempre
o fazia quando lá ia a trabalho. O cafezinho, naquela casinha nos fundos da
Igreja das Fronteiras, era de lei. Pouco tempo depois ele morreu e me fez
falta. Faz muita falta a este País, como vejo agora. Desta última vez que o vi
contou-me uma história deliciosa que com ele havia ocorrido nos anos de chumbo.
Lembro-me de que ri muito e só depois percebi que o riso fácil era uma
avaliação menor para o ocorrido. A história é tão linda que nem sei! Não faz
rir, não. Faz pensar o quanto havia de grande e humano naquele homem frágil, de
voz tão mansa.
Mas vamos ao relato e vocês julgam: naquela época tão sofrida
dos anos que se seguiram a 1969, D. Helder era uma figura preocupante. Como
enfrentá-lo? Confinado à sua Arquidiocese a “gloriosa” tinha a maior
dificuldade em fazê-lo calar-se. Os olhos do mundo estavam sobre ele e uma
repressão maior que o confinamento teria conseqüências funestas para o Governo.
Havia um pavor de que qualquer agressão a ele dirigida pudesse ser atribuída à
truculência dos militares. E estes deliravam temendo que um atentado
“terrorista” fosse engendrado para incriminá-los. Da mesma forma, os
admiradores de D. Helder temiam por alguma agressão destes mesmos militares. Isto
fazia com que qualquer deslocamento do Arcebispo fosse acompanhado por carros
das duas facções visando garantir e proteger sua integridade física. Isto
incomodava D. Helder que adorava andar a pé pelas ruas do Recife e gostava de
fazê-lo com liberdade.
Naquela mesma época o Prefeito resolveu, a bem da ordem e dos
bons costumes, banir as prostitutas da cidade, transferindo-as para uma
periferia longínqua. Apavoradas com a possível redução da clientela que lhes
garantia o sustento, foram procurar D. Helder para que intercedesse a seu
favor. O que ele prontamente fez
conseguindo que fosse sustada a medida, convencido de que “esconder o sofá” não
resolveria o grave problema social.
Pois bem, num de seus passeios a pé, D. Helder desesperado
com a perseguição dos dois carros, deu uma de esperto. Enveredou-se por uma
ruela à qual os carros não poderiam ter acesso. Só depois de andar alguns
metros é que se deu conta de que estava em pleno baixo meretrício. Prostitutas
em portas, janelas e sacadas, quase nuas, ajoelhavam-se à sua passagem pedindo
benção, que ele foi ministrando à direita e à esquerda, apertando o passo para
dali sair o mais rápido possível antes que algum repórter surgindo do nada
registrasse o inusitado episódio que faria a festa de jornais do mundo inteiro.
Já quase no meio da rua, de uma das sacadas veio o grito entusiasmado e
comovido: Viva D. Helder, o bispo das
Putas! E a rua explode em palmas e vivas. Abençoando cada vez mais rápido,
quase correndo, ele se foi.
E sorrindo me contou o acontecido. Bonito, não? É o que faria
Cristo, acho, na mesma situação. Mas certamente não é o que faria o atual
Arcebispo. E isto provavelmente se deve ao fato dele não conhecer o Filho de
Deus tão intimamente quanto D. Helder conhecia. E, porque não o conhecia não
aprendeu que perceber as exceções, e tratá-las como tal, é um ato humano,
bonito, inteligente e, sobretudo, cristão.
2012
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