segunda-feira, agosto 19, 2013

AS ARGOLAS E A MEMÓRIA

Uma empregada negra gira em torno da mesa. Impecavelmente uniformizada e de avental. Caminha lenta e solene, retirando de um cesto de vime enormes guardanapos de linho envolvidos por argolas de marfim com números incrustados em metal dourado. Atenta, ela consulta o número de cada uma antes de colocá-la sobre o prato num ordenamento ilógico.  A última a ser colocada, à cabeceira da mesa é a argola numero 2. É a da Avó.

A lembrança vem nítida. E com ela a mesma sensação de segurança, de pertencer, de ser alguém, provocava pela colocação da argola 17. A minha. Entre as de número 10 do Tio Cavaleiro e 13 da Prima Mais Querida. Ao contrário da numeração das argolas que indicavam o surgimento da pessoa na família, ou por nascimento ou por casamento, o critério da ordenação na mesa nunca foi revelado. A partir de certa idade comecei a desconfiar que a ordenação representasse a ordem de preferência da Avó. Não fosse assim por que o tio Cavaleiro, que era o mais moço, ocupava sua direita? Dele a Avó dizia: ponho todos num prato da balança e ele no outro. E o equilíbrio se dá!  Absurdo aceito com naturalidade por todos sem o menor ressentimento. À esquerda a Tia Literata. A argola 1 havia sido do Avô, morto muito antes do meu nascimento e ocupava lugar na mesa de cabeceira do quarto onde morrera, mantido exatamente como no momento da morte. Duas outras argolas provocavam uma lacuna na numeração: a 5 e a 9 pertencentes aos dois tios que morreram ainda crianças. Fechando a fila a argola 23 da pequena filha do Tio Cavaleiro, última figurante da terceira geração. A Avó ainda vivia quando despontaram cinco bisnetos. Mas esta quarta geração não foi agraciada com argolas. Quem sabe a Avó, onisciente que era, sabia que com sua morte o clã seria desfeito. Argolas seriam impossíveis porque a mesa iria desaparecer como tudo mais.

À mesa conversa gira animada quando se escuta o guizo de uma charrete. Um silêncio aflito se instala. O som do guizo cessa e um empregado esbaforido entra com uma garrafa de cerveja nas mãos e a coloca em frente do Tio Pediatra que está tirando o guardanapo da argola 11.  Ele abre, enche o copo. O empregado dá um passo atrás e aguarda alguma coisa. O Tio prova e num acesso de fúria arremessa o prato pela porta janela em direção à varanda. Aos berros denuncia: está choca! Quando é esta droga de luz chegará? Geladeira. Exijo uma geladeira! Ouve-se a voz da Avó, ordenando à empregada, sempre a postos atrás de sua cadeira: outro prato para o Doutor. E ao som dos caquinhos do prato arremessado, varridos pelo empregado, a conversa retoma alegre.

A argola 8 pertencia ao Tio Jogador. Seu lugar à mesa tinha uma disposição diferente para que pudesse ser colocado ao lado do prato o minúsculo tabuleiro de xadrez que sempre o acompanhava quando não estava frente ao grande tabuleiro-mesa que ocupava um lugar num dos cantos da sala de estar. Só deixava um deles quando numa mesa de poker ou de bridge onde iniciava os sobrinhos nestes jogos garantindo assim parceiros não conseguidos entre os irmãos. Mesmo para o xadrez éramos aliciados. Aos sete anos ganhávamos deste tio um tabuleiro e peças de xadrez e enquanto ele lia jornal jogava conosco partidas simultâneas em que cantávamos nossas jogadas e recebíamos de volta as suas sem jamais conseguirmos uma vitória.

A argola 21 pergunta: em que parte você está? Refere-se o Tio Literato ao À La Recherche Du Temp Perdu, de Proust. Uma das tarefas literária daquele verão. Engulo em seco: estou detestando o livro. O Tio Cavaleiro pisca o olho maroto sugerindo: enrola qualquer coisa. A Tia Madrinha vem a socorro: este seu namoro está ficando sério. Ele vem jantar hoje?

Os visitantes também tinham argolas idênticas às outras, mas sem número.  O namorado que se tornou marido foi agraciado com uma quando preencheu a condição. A esta altura já se estava no número 26. As duas primas mais velhas haviam casado antes.

Deito a cabeça no colo da Avó. São mágicas as argolas? Quando você comprou como é que sabia quantas seriam? Quantos números você ainda tem? Ela sorri. Aquele sorriso fino e enigmático de sempre e responde: tenho tantas quantas forem necessárias. Seu olhar percorre a sala onde estão todos conversando animados. Alguns com pequenos no colo. Não necessariamente seus filhos. Os colos eram comunitários. A gente se apoderava do mais a mão. Ainda com o sorriso, depois de olhar longamente para cada um, a avó declara: mágicas? Vai daí quem sabe, meu bem. Talvez sejam...
2007  

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