domingo, agosto 18, 2013

PROBLEMA DE REPERTÓRIO

Nos seus radiosos 20 anos o rapaz me declara: isso não está no meu repertório numa sorridente resposta à minha pergunta: você sabe qual é o ônibus que passa na Praça XV? Não resisto: você tem um repertório?! Ele me assegura que todo mundo tem e se afasta levando o repertório que eu daria tudo para conhecer.
Já instalada no ônibus que evidenciava a não necessidade de minha pergunta, pois ostentava em letras enormes o nome Praça XV, o “todo mundo tem começa a incomodar. Desolada, me pergunto será que eu tenho um? Repertório pressupõe, creio eu, uma classificação, um conjunto homogêneo de informações prontas para divulgação. Um mínimo de organização deve ser necessário. Uma bela bagunça de saberes e pensares não deve se constituir em um. Desisto da auto-analise. Sempre que esta me acomete oscilo entre dois sentimentos opostos: ou extremamente complacente ou extremamente crítica. Melhor ampliar o campo da pesquisa investigando parentes e amigos buscando identificar o repertório lá deles. Mas de há muito que os aceito exatamente como são e isto pode me levar a julgamentos que não pretendo fazer. Melhor pensar em tese sem identificar o objeto.
E me dou conta de que existem, sim, pessoas-repertório. Devem ser aquelas especializadas em determinados assuntos cujas minúcias conseguem encaixar em qualquer conversa. Ultimamente surgiu o “eno-chato com seu vasto repertório de informações sobre o vinho que está se tomando. Mais das vezes fala daquele vinho que se deveria tomar ao invés deste, tirando todo prazer que estávamos tendo. E despeja em nossas taças um verdadeiro tratado sobre perfume (perdão: “bouquet”!), gosto, transparência, textura e que mais sei eu.
Tem aquele nota-ao-pé-da-página que teima em fornecer pormenores sobre qualquer fato, pessoa ou assunto em pauta fazendo com que a conversa que estava gostosa seja entrecortada a cada segundo por informações de datas, parentescos, fatos históricos e acidentes geográficos.
Existe ainda o que têm um repertório de pessoas de destaque. Ao mencionar-se um nome imediatamente nos é repassada a informação de que o dono do repertório o conhece pessoalmente e às vezes, com um ar de falsa modéstia, é dito que até intimamente. Este conhecimento confere uma enorme importância ao conhecedor. 
E me vem à memória um incidente do qual fui protagonista pelo fato de, por mero acaso, conhecer “alguém”. Fui nesta ocasião objeto de extraordinário up-grade aos olhos de outros. Os “outros” eram graduados funcionários do Governo e a cena passava-se em Brasília, mais precisamente na Academia de Tênis onde pululam pessoas notáveis. Por lá aportei ao final de uma reunião de trabalho a que fui obrigada a comparecer representando o organismo ao qual prestava assessoria num projeto. Vai daí que me vi incluída nessa ilustre mesa de jantar. Quer dizer, eu não estava de fato incluída nem na mesa, nem em parte alguma. Deixarem de interessar-se por mim tão logo ficou evidente que não seria capaz de concorrer com um único vocês souberam que...?
E eis que entra no restaurante, acompanhado por um séqüito, “O Ministro”! Eu o havia conhecido em casa de amigos, havia séculos, quando nem sonhava ser um. O mais graduado presente em nossa mesa levanta-se e abre os braços chamando a atenção do Ministro que passaria forçosamente por nós, a caminho da sua.  Estranhamente iniciou-se um balé: todos os outros também se levantaram abrindo e agitando seus respectivos braços num entusiasmo espantoso com um sorriso de beatitude nos lábios. Eu me deixei ficar onde estava pensando: é claro que este sujeito não se lembra mais de mim. Não vou nem cumprimentar pra não passar vergonha.
Mas para espanto da platéia (e meu!) o Ministro, ignorando os braços dançarinos, avança em minha direção dizendo meu nome em alto e bom som, completando com “mas que prazer vê-la. Há quanto tempo! Por onde tem andado? Fazendo o que em Brasília?” Daí seguiu-se uma rápida troca de frases intrigantes para os presentes: eram gostosas aquelas reuniões. Eram mesmo. Tem estado com eles? Não. Faz tempo que...   E, horror dos horrores: o homem me agracia com um cartão dizendo ai tem o número de meu celular. Não deixe de me telefonar sempre que vier à Brasília. E ele se afasta em direção ao séqüito que o aguardava lançando apenas um sorriso para os braços abertos.
A partir daí foi um Deus nos Acuda. Meu estado de total invisibilidade transformou-se num brilho de “super star. Eu, até aquele momento aquela insignificante figura, era agora detentora do número do celular Dele! Meteoricamente passando de “out” ain fui guindada à posição de pessoa interessantíssima sobre a qual tudo deveria ser sabido. Ao final do interminável jantar deu-se uma também interminável discussão entre os presentes que se digladiavam para resolver qual deles me depositaria no hotel com a bolsa mais pesada pela quantidade de cartões (ainda os tenho!) com que fui agraciada. Vai ver imaginavam que neste percurso poderia ser obtido o precioso número do celular...  
O ônibus me deposita na Praça XV interrompendo a lembrança. E me ficou a certeza de que tenho, sim, um repertório: incidentes que tornaram minha vida pra lá de divertida e que me valerão, por um longo tempo, material para estas crônicas.
2007



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