Nos seus radiosos 20 anos o rapaz me declara: isso não está no meu repertório numa
sorridente resposta à minha pergunta: você
sabe qual é o ônibus que passa na Praça XV? Não resisto: você tem um repertório?! Ele me assegura que todo mundo tem e se
afasta levando o repertório que eu daria tudo para conhecer.
Já instalada no ônibus que evidenciava a não necessidade de
minha pergunta, pois ostentava em letras enormes o nome Praça XV, o “todo mundo
tem” começa a incomodar. Desolada, me
pergunto será que eu tenho um? Repertório pressupõe, creio eu, uma
classificação, um conjunto homogêneo de informações prontas para divulgação. Um
mínimo de organização deve ser necessário. Uma bela bagunça de saberes e
pensares não deve se constituir em um. Desisto da auto-analise. Sempre que esta
me acomete oscilo entre dois sentimentos opostos: ou extremamente complacente
ou extremamente crítica. Melhor ampliar o campo da pesquisa investigando
parentes e amigos buscando identificar o repertório lá deles. Mas de há muito
que os aceito exatamente como são e isto pode me levar a julgamentos que não
pretendo fazer. Melhor pensar em tese sem identificar o objeto.
E me dou conta de que existem, sim, pessoas-repertório. Devem
ser aquelas especializadas em determinados assuntos cujas minúcias conseguem
encaixar em qualquer conversa. Ultimamente surgiu o “eno-chato” com seu vasto repertório de
informações sobre o vinho que está se tomando. Mais das vezes fala daquele
vinho que se deveria tomar ao invés deste, tirando todo prazer que estávamos
tendo. E despeja em nossas taças um verdadeiro tratado sobre perfume (perdão:
“bouquet”!), gosto, transparência, textura e que mais sei eu.
Tem aquele nota-ao-pé-da-página que teima em fornecer pormenores
sobre qualquer fato, pessoa ou assunto em pauta fazendo com que a conversa que
estava gostosa seja entrecortada a cada segundo por informações de datas,
parentescos, fatos históricos e acidentes geográficos.
Existe ainda o que têm um repertório de pessoas de destaque.
Ao mencionar-se um nome imediatamente nos é repassada a informação de que o
dono do repertório o conhece pessoalmente e às vezes, com um ar de falsa
modéstia, é dito que até intimamente. Este conhecimento confere uma enorme
importância ao conhecedor.
E me vem à memória um incidente do qual fui protagonista pelo
fato de, por mero acaso, conhecer “alguém”. Fui nesta ocasião objeto de extraordinário
up-grade aos olhos de outros. Os “outros” eram graduados funcionários do Governo
e a cena passava-se em Brasília, mais precisamente na Academia de Tênis onde
pululam pessoas notáveis. Por lá aportei ao final de uma reunião de trabalho a
que fui obrigada a comparecer representando o organismo ao qual prestava
assessoria num projeto. Vai daí que me vi incluída nessa ilustre mesa de
jantar. Quer dizer, eu não estava de fato incluída nem na mesa, nem em parte
alguma. Deixarem de interessar-se por mim tão logo ficou evidente que não seria
capaz de concorrer com um único vocês
souberam que...?
E eis que entra no restaurante, acompanhado por um séqüito,
“O Ministro”! Eu o havia conhecido em casa de amigos, havia séculos, quando nem
sonhava ser um. O mais graduado presente em nossa mesa levanta-se e abre os
braços chamando a atenção do Ministro que passaria forçosamente por nós, a
caminho da sua. Estranhamente iniciou-se
um balé: todos os outros também se levantaram abrindo e agitando seus
respectivos braços num entusiasmo espantoso com um sorriso de beatitude nos
lábios. Eu me deixei ficar onde estava pensando: é claro que este sujeito não
se lembra mais de mim. Não vou nem cumprimentar pra não passar vergonha.
Mas para espanto da platéia (e meu!) o Ministro, ignorando os
braços dançarinos, avança em minha direção dizendo meu nome em alto e bom som,
completando com “mas que prazer vê-la. Há
quanto tempo! Por onde tem andado? Fazendo o que em Brasília?” Daí
seguiu-se uma rápida troca de frases intrigantes para os presentes: eram gostosas aquelas reuniões. Eram mesmo.
Tem estado com eles? Não. Faz tempo
que... E, horror dos horrores: o
homem me agracia com um cartão dizendo ai
tem o número de meu celular. Não
deixe de me telefonar sempre que vier à Brasília. E ele se afasta em
direção ao séqüito que o aguardava lançando apenas um sorriso para os braços
abertos.
A partir daí foi um Deus nos Acuda. Meu estado de total
invisibilidade transformou-se num brilho de “super star”. Eu, até aquele momento aquela insignificante figura, era agora
detentora do número do celular Dele! Meteoricamente passando de “out” a “in” fui guindada à
posição de pessoa interessantíssima sobre a qual tudo deveria ser sabido. Ao
final do interminável jantar deu-se uma também interminável discussão entre os
presentes que se digladiavam para resolver qual deles me depositaria no hotel
com a bolsa mais pesada pela quantidade de cartões (ainda os tenho!) com que
fui agraciada. Vai ver imaginavam que neste percurso poderia ser obtido o
precioso número do celular...
O ônibus me deposita na Praça XV interrompendo a lembrança. E
me ficou a certeza de que tenho, sim, um repertório: incidentes que tornaram
minha vida pra lá de divertida e que me valerão, por um longo tempo, material
para estas crônicas.
2007
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