terça-feira, julho 30, 2013

CONFLITO DE GERAÇÕES ENTRE AMIGAS DE INFÂNCIA

Elas são amigas de infância. O que é no mínimo estranho porque uma já com o pé na privilegiada terceira idade, poderia ser mãe da outra. Não de menos, e não abrem mão disto, são amigas de infância. E, por que o são, são também íntimas. A intimidade vem, sobretudo, de uma visão parelha das coisas e da vida. Uma cumplicidade, sabe? Incondicional. Pelo menos era o que uma delas assim pensava. Mas... a noite já ia alta. O marido da amiga de infância mais moça, depois de cochilar, bocejar e espreguiçar-se numa desnecessária demonstração de que estava com sono, foi dormir. E as duas ali ficaram a sós com uma garrafa de uísque. Rola assunto. Falaram de tudo e aí veio o silêncio. Aquele não constrangedor que só é permitido a uns poucos privilegiados. De repente a mais moça explode, irritada e até agressiva, verbalizando o que lhe ia n’alma, fazia tempo: caramba! Você nunca me deu detalhes de sua vida amorosa. Sei apenas nomes. Vagas referências. Isto é uma deslealdade. A que podia ser mãe, do alto de sua dignidade responde: não há nada para contar. O que passou, passou. Um riso maldoso veio em resposta: que droga de frase mais cafona! Adoça o tom: conta, vai... Tempos depois iria se espantar de ter embarcado no pedido, mas o fato é que naquela noite o fez, em ordem cronológica, buscando referências lá, muito atrás, muito lá longe. Logo ela que não era de voltar ao passado. Com o dedo indicador da mão direita abaixou o mínimo da esquerda: primeiro foi... Sorriu internamente: seria uma enumeração. Encantada percebeu que podia fazer uma enumeração! Iniciou mansa, apenas relatando, sem adjetivos, agarrando-se aos substantivos para fugir da emoção. Mas ao abaixar o dedo médio da mão esquerda com o indicador da direita, murmurando: o terceiro..., perdeu o pé e pensou: que pessoa interessante era eu! Muito adiante de meu tempo. Mais uma dose de uísque e o terceiro transformou-se num tórrido romance. Ai desembalou: perdeu-se numa torrente adjetivada, cada vez mais deslumbrada, no embalo de seus amores pregressos que vistos de longe estavam parecendo muito emocionantes. Lindos e, sobretudo, audaciosos. Devia ter olhado a expressão do rosto da outra que ouvia em silêncio. Devia. Mas não fez isto. Ao contrário, seu olhar pousava em rostos perdidos no tempo, embelezados pela memória. Até mesmo no rosto dela, nas muitas idades. Desavergonhadamente achou-se bela, arrebatadora, charmosa. Ao abaixar do último dedo, respirou fundo. Olha para amiga de infância, sorrindo, doce, aguardando, os comentários que viriam. Num tom de terrível descaso a amiga desmoronou seu mundo com apenas três sílabas: só isso?! Estarrecida, revoltada e magoada, em silencio escutou o que se seguiu a estas palavrinhas terríveis, tendo como trilha musical o apito de um segurança que, na madrugada, percorria a rua: você não viveu! Não passou por nada! Que coisa mais chocha. Mais sem graça. Sabe o que mais? Você tem que tomar uma providência. Ainda é tempo de viver um desatino! Ousar perigosamente! E, num tom que não admitia réplicas: você vai descer agora, vai abordar este guarda noturno que está apitando e vai levá-lo para sua casa. Isto sim! Será uma aventura digna e capaz de remendar esta sua triste e pobre história. Sem dizer uma única palavra ela se levanta, digna e indignada, e sai batendo a porta. Desabalada acelera o carro, descendo a rua Jardim Botânico, em busca do Humaitá e pensando: louca! Ela é louca! Em casa procura acalmar-se. Não vai conseguir dormir depois do desmantelamento de seu passado amoroso. Tão bonito era! Que droga! O telefone toca: num murmúrio vem a voz assustada: ele está aí? Meu Deus! O que foi que eu fiz! Pode te acontecer alguma coisa. Fala! Um sorriso perverso ilumina seu rosto e doce, ela murmura: não vai acontecer nada. Ele... é maravilhoso. Não posso falar agora, ele... Desliga o telefone e deixa-o fora do gancho. Vai para cozinha e faz um sanduíche de salaminho que come vorazmente, olhos grudados num filme antigo, tão antigo, que havia visto, décadas atrás, de mãos dadas com o “terceiro”. 


2005

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