quarta-feira, agosto 14, 2013

NA LINGUAGEM DAS FLORES E DAS COISAS CALADAS

As palavras não são exatamente as de Baudelaire. Mas o sentido aqui está. E por sentido estou falando do sentir e não de significância. Jorge Pontual, na tradução do poema, as transmudou bonitas, tão bonitas, para que eu pudesse em minha língua começar a pensar, como agora. À medida que vou envelhecendo o som da linguagem das flores e das coisas caladas é ensurdecedor. Basta abrir a janela. A mangueira e abacateiro me falam de coisas incríveis. O verbo falar está mal colocado. Melhor seria dizer que me passam coisas incríveis. Isto vem aumentado com o tempo.
No fim de um ano e na proximidade do ano que virá parece haver uma aceleração. A gente se pega lembrando o pra traz e imaginando o pra frente conduzida neste vai-vem pela memória e pela esperança. Uma aciona a outra, esmiuçando, acrescentando, explicando, eliminando arestas. E é nestes momentos que a linguagem das flores e das coisas caladas pega forte. Diferentes de mim não mudam com o tempo. A mangueira e o abacateiro crescem, sim. Mas na essência, ao contrário de mim, são sempre os mesmos. E durante todos estes anos, eles imutáveis e eu mutante, me apresentam a mim mesma exibindo as muitas que fui e sugerindo as que serei. Não como numa foto. Mas como num filme. Desenrolando, sabem? Por que nelas, coisas caladas, é que ficam guardados intactos os meus vários eus através dos tempos.
Hoje se dá uma enorme importância às modificações físicas, numa tentativa às vezes vã e às vezes bem sucedida, tentando evitá-las e retardá-las. Não nego que tenham sua importância. E, sem dúvida, são mais visíveis. Mas as outras... Ah, as outras! São extraordinárias. E é delas que tenho notícia pela linguagem das flores e das coisas caladas. É possível que sejam caladas por discrição. Se falassem todo mundo iria escutar e isto poderia criar problemas. Revelariam tudo a que assistiram como mudas e isentas testemunhas. Ás vezes me vem vontade absurda de perguntar à mangueira ou ao abacateiro: qual é seu ponto de vista sobre...? Por que é o que eles mais têm: pontos de vista que vão se ampliando à medida que crescem dominando com seu olhar o que há em volta.
Pela janela me observam há anos. Sabem de coisas que ninguém sabe. Não que eu tenha segredos terríveis ou comportamentos espúrios quando só. Não mesmo. Mas as reflexões, os pensamentos, os sentimentos de dor e alegria e os gestos quando no “sozinha em casa” são muito diversos daqueles visíveis para o mundo lá fora. Quando só, sou mais eu sem que a autocensura se intrometa pra atrapalhar. E a mangueira e o abacateiro nunca censuram, nunca perguntam e jamais desenvolvem teorias a meu respeito. Apenas observam e escutam. Nenhuma intolerância se manifesta. Aceitam a mim, como aceitam a todos. Preconceito é coisa que nunca ouviram falar. Quer dizer, ouviram sim, pois tudo ouvem, mas não dão a menor bola.
Vez por outra percebo um sorriso no mexer quase imperceptível de um galho me alertando: você realmente não quer isto, sua boba. E sempre estão certos. Na sua sabedoria mais que discreta me chamam à ordem. E eu me rendo como não me renderia a alguém falante porque as coisas caladas sabem me fazer sorrir. E como são disponíveis! Estão lá sempre, a qualquer hora do dia ou da noite. Não que estejam me esperando. Acho que não. Simplesmente estão lá. Não me cobram presença e talvez por isso mesmo eu as procure todos os dias. Várias vezes por dia, na verdade: quando acordo, quando vou dormir, quando chego em casa. O chegar não teria o efeito mágico que tem se não as encontrasse sempre belas e coquetes balançando na brisa mansa que vem da Lagoa. 
Vez por outra vem uma necessidade imperiosa de procurá-las para que me ajudem a refletir sobre alguma coisa ou sobre alguém que me perturbou. Vai daí que me escutam, atentas. Nem sempre concordam com minhas avaliações e me alertam: você agia assim quando tinha quinze anos, criatura! Agora fica um tanto esquisito. Você não acha? Agradeço o alerta que provocaria em mim uma reação até agressiva se feito por alguém. Estão cobertas de razão, como sempre, as coisas caladas. Tento uma desculpa: esta adolescente fora de hora às vezes escapole. Sei lá eu de onde vem. E as coisas caladas se espantam: Ora, vem de você mesma, lembra? E é bom que ela ainda esteja por ai. Só que não deve aparecer na hora e no lugar errados. Tem hora pra tudo, né? Se tem, penso!  
Mas o melhor momento é sempre aquele em que alguma coisa dói. Dói pra valer. Então, as coisas caladas, que recriminaram minha volta à adolescência, com o maior carinho me fazem voltar à infância. No seu colo seguro e quente sinto uma carícia leve nos meus cabelos como Babá fazia e escuto o que só anjos da guarda sabem murmurar: pronto... passou... já passou...

2006

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