A ela parece um depois do almoço como tantos outros no sítio:
a Avó, em sua cadeira de balanço, relê Proust; os tios literatos combinam uma
ida ao Rio para encontrarem os amigos, na José Olimpio; o Tio Jogador, frente a
um tabuleiro de xadrez está fora do mundo; sua mulher borda monogramas em
lenços de cambraia; o Tio Eqüestre, também médico. desenha a pista do próximo
torneio observado por sua mulher, linda Tia Sulista que ela idolatra; a Tia Pintora
frente a um cavalete reproduz na tela o belo arranjo de flores que sempre
adorna a sala; seu marido - o Tio Pediatra - furioso discute diretamente com o
jornal, dando socos no mesmo; o Tio Ortopedista faz, como sempre, alguma ação
julgada imprópria pela família, enquanto sua mulher – a Tia das Plantas -
aparece e desaparece no pequeno bosque atrás da casa; o Pai (o Tio Socialista,
para seus primos) tenta convencer a Mãe, sem muito sucesso, de que não tem a
menor importância se ela – a filha - ganhar ou perder o torneio hípico.
Ela e os primos, adolescentes e crianças, vagam de tio em
tio, esperando a hora em que poderão se mandar uns para a piscina e outros para
os sítios vizinhos onde os esperam os recentes namorados e namoradas. Para isto
terão que fazer uma manobra diversionista para escapar do Tio Jogador que
certamente vai convocar três deles para a mesa de bridge tão logo servido o
café.
E eis que o Tio Pediatra resolve mudar de oponente já que o
jornal não está oferecendo resistência e volta o olhar para sua mulher. É
linda, a tia e madrinha, e mais que isto vive de beleza. Uma Midas estética
torna belo tudo que toca. A interpelação do marido, aos berros, sequer a faz
voltar-se como também não modifica a postura dos demais presentes: minha mulher, onde estão minhas abotoaduras de madrepérola? Recuando um pouco
para avaliar um traço na tela ela murmura distraída: na gaveta do chiffonier.
Há que se admitir que a fúria que se seguiu a esta resposta
tinha alguma razão de ser. O belo chiffonier renascentista, (apelidado pela
família de chafurniê) fica entre a sala de estar e a de jantar e nele
acumula-se uma quantidade espantosa de pequenos objetos para os quais não se
encontra melhor destino e é dotado de cinqüenta e sete gavetas!!! Portanto a
indicação precisa de “na” gaveta soa
como uma provocação! O tio emite um urro: que
gaveta, pinóia?! A manifestação não provoca sequer um levantar de olhos dos
membros da família. O “uma delas” que vem como resposta põe em alerta o bando
jovem.
Está para ter inicio mais uma performance e eles marcham
atrás do tio que investe para o móvel, numa cavalgada de guerra, gritando: hoje eu mato este chafurniê. Com enorme
violência abre a primeira gavetinha (são mínimas) e após um rápido olhar em seu
conteúdo, solta um sonoro palavrão para delícia dos jovens espectadores, mas
não dos adultos que se até aquele momento haviam ignorado a cena agora se põem
de pé indignados lançando sobre o faltoso olhares de terrível repreensão!
Palavrão! Frente às crianças. Inadmissível! Ele mesmo parece assombrado com sua
própria audácia e dirige um olhar culpado para a Avó que exibe uma expressão
aterradora.
Mas o tio não se deixa vencer. Respira fundo e parte para a
segunda gaveta com igual violência e tendo o cuidado de agora urrar sinônimos: cocô! Cocozão! A partir daí cada gaveta aberta e devolvida
com violência a sua situação de fechada, provoca combinações extraordinárias
das palavras titica, bosta, cocô (que se desdobram em titica, cocô e bosta de
vaca, de galinha, de porco de cavalo, e absurdamente, de javali). Como estas
são palavras plenamente aceitáveis todos voltam a seus afazeres como se nada
estivesse acontecendo.
Os jovens sentados no chão são acometidos de um paroxismo de
riso. Os gritos se fazem cada vez mais retumbantes, mas nem as duas copeiras
que tiram a mesa do almoço se dão ao trabalho de acusar o som. Como platéia ele
conta apenas com as filhas e os sobrinhos que, meio a gargalhadas, incentivam: vai tio! Vai papai! Quebra logo este
chafurniê! Só faltam poucas gavetas!
Ele já não mais olha para o conteúdo das gavetas provavelmente esquecido
do que buscava. Apenas abre e as arremessa de volta proferindo além das
imprecações já mencionadas, ofensas dirigidas ao chafurniê, ameaçando-o de
destruição total por fogo, por machado, por serrote, e estranhamente, por
guilhotina. O infeliz móvel tornara-se um ser vivente dotado de cabeça! Como D.
Quixote o tio enfrenta seu moinho!
E eis que, plácida, linda, e sorridente, aproxima-se a
mulher. Ela passa pelo grupo de jovens afagando suas cabeças e vai diretamente
a uma gaveta já massacrada e dela retira as benditas abotoaduras informando: Cá estão, meu nego. Veja só! Caiu um pedaço
da madrepérola de uma delas. Melhor jogar fora. Como por encanto a fúria do
tio passa e ele sorri para mulher: Faça
isto, minha mulher, faça isto. Sempre detestei estas abotoaduras. E volta à
sua cadeira e a seu jornal gritando: por
que ainda não serviram o café? Serviçais
incompetentes! Parasitas! Carinhoso, puxa um dos pequenos que o observava
encantado: vem aqui pro colo do tio, seu
tampinha. Gostosamente e confiante o pequenino a ele se agarra. E a Avó
observa a cena sorrindo enquanto o cheiro de café inunda a sala.
2007
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