sexta-feira, agosto 30, 2013

A BATALHA DO CHIFFONIER

A ela parece um depois do almoço como tantos outros no sítio: a Avó, em sua cadeira de balanço, relê Proust; os tios literatos combinam uma ida ao Rio para encontrarem os amigos, na José Olimpio; o Tio Jogador, frente a um tabuleiro de xadrez está fora do mundo; sua mulher borda monogramas em lenços de cambraia; o Tio Eqüestre, também médico. desenha a pista do próximo torneio observado por sua mulher, linda Tia Sulista que ela idolatra; a Tia Pintora frente a um cavalete reproduz na tela o belo arranjo de flores que sempre adorna a sala; seu marido - o Tio Pediatra - furioso discute diretamente com o jornal, dando socos no mesmo; o Tio Ortopedista faz, como sempre, alguma ação julgada imprópria pela família, enquanto sua mulher – a Tia das Plantas - aparece e desaparece no pequeno bosque atrás da casa; o Pai (o Tio Socialista, para seus primos) tenta convencer a Mãe, sem muito sucesso, de que não tem a menor importância se ela – a filha - ganhar ou perder o torneio hípico.
Ela e os primos, adolescentes e crianças, vagam de tio em tio, esperando a hora em que poderão se mandar uns para a piscina e outros para os sítios vizinhos onde os esperam os recentes namorados e namoradas. Para isto terão que fazer uma manobra diversionista para escapar do Tio Jogador que certamente vai convocar três deles para a mesa de bridge tão logo servido o café.
E eis que o Tio Pediatra resolve mudar de oponente já que o jornal não está oferecendo resistência e volta o olhar para sua mulher. É linda, a tia e madrinha, e mais que isto vive de beleza. Uma Midas estética torna belo tudo que toca. A interpelação do marido, aos berros, sequer a faz voltar-se como também não modifica a postura dos demais presentes: minha mulher, onde estão minhas abotoaduras de madrepérola? Recuando um pouco para avaliar um traço na tela ela murmura distraída: na gaveta do chiffonier.
Há que se admitir que a fúria que se seguiu a esta resposta tinha alguma razão de ser. O belo chiffonier renascentista, (apelidado pela família de chafurniê) fica entre a sala de estar e a de jantar e nele acumula-se uma quantidade espantosa de pequenos objetos para os quais não se encontra melhor destino e é dotado de cinqüenta e sete gavetas!!! Portanto a indicação precisa de “na” gaveta soa como uma provocação! O tio emite um urro: que gaveta, pinóia?! A manifestação não provoca sequer um levantar de olhos dos membros da família. O “uma delas” que vem como resposta põe em alerta o bando jovem.
Está para ter inicio mais uma performance e eles marcham atrás do tio que investe para o móvel, numa cavalgada de guerra, gritando: hoje eu mato este chafurniê. Com enorme violência abre a primeira gavetinha (são mínimas) e após um rápido olhar em seu conteúdo, solta um sonoro palavrão para delícia dos jovens espectadores, mas não dos adultos que se até aquele momento haviam ignorado a cena agora se põem de pé indignados lançando sobre o faltoso olhares de terrível repreensão! Palavrão! Frente às crianças. Inadmissível! Ele mesmo parece assombrado com sua própria audácia e dirige um olhar culpado para a Avó que exibe uma expressão aterradora.
Mas o tio não se deixa vencer. Respira fundo e parte para a segunda gaveta com igual violência e tendo o cuidado de agora urrar sinônimos: cocô! Cocozão!  A partir daí cada gaveta aberta e devolvida com violência a sua situação de fechada, provoca combinações extraordinárias das palavras titica, bosta, cocô (que se desdobram em titica, cocô e bosta de vaca, de galinha, de porco de cavalo, e absurdamente, de javali). Como estas são palavras plenamente aceitáveis todos voltam a seus afazeres como se nada estivesse acontecendo.
Os jovens sentados no chão são acometidos de um paroxismo de riso. Os gritos se fazem cada vez mais retumbantes, mas nem as duas copeiras que tiram a mesa do almoço se dão ao trabalho de acusar o som. Como platéia ele conta apenas com as filhas e os sobrinhos que, meio a gargalhadas, incentivam: vai tio! Vai papai! Quebra logo este chafurniê! Só faltam poucas gavetas!  Ele já não mais olha para o conteúdo das gavetas provavelmente esquecido do que buscava. Apenas abre e as arremessa de volta proferindo além das imprecações já mencionadas, ofensas  dirigidas ao chafurniê, ameaçando-o de destruição total por fogo, por machado, por serrote, e estranhamente, por guilhotina. O infeliz móvel tornara-se um ser vivente dotado de cabeça! Como D. Quixote o tio enfrenta seu moinho!
E eis que, plácida, linda, e sorridente, aproxima-se a mulher. Ela passa pelo grupo de jovens afagando suas cabeças e vai diretamente a uma gaveta já massacrada e dela retira as benditas abotoaduras informando: Cá estão, meu nego. Veja só! Caiu um pedaço da madrepérola de uma delas. Melhor jogar fora. Como por encanto a fúria do tio passa e ele sorri para mulher: Faça isto, minha mulher, faça isto. Sempre detestei estas abotoaduras. E volta à sua cadeira e a seu jornal gritando: por que ainda não serviram o café? Serviçais incompetentes! Parasitas! Carinhoso, puxa um dos pequenos que o observava encantado: vem aqui pro colo do tio, seu tampinha. Gostosamente e confiante o pequenino a ele se agarra. E a Avó observa a cena sorrindo enquanto o cheiro de café inunda a sala.

2007

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