segunda-feira, agosto 26, 2013

O MENINO E A FINITUDE

A morte do Tupi, assim de repente, causa uma devastação na cabecinha do menino. Em seus quatro anos morte é um fato totalmente desconhecido e a compreensão de que cachorro que morre não late, não come, não pula e não lambe o rosto, é muito difícil, se não impossível.
O Pai e a Mãe desdobram-se em explicações e numa concessão extrema (já que não aprovavam mentiras) enviam Tupi a caminho do céu onde irá brincar com anjinhos, nas nuvens. O menino detesta esta idéia. Os anjinhos que arranjem outro cachorro pra eles!  Por que é que não levaram o cachorro do Tico? Numa última tentativa para acabar com aquele horror, ele pede: e se passar mercúrio cromo nele? Quem sabe aquele miraculoso remédio vermelho que não arde restabelecerá a normalidade, o todo dia gostoso, o acordar com uma lambida. Uma enorme sensação de insegurança se instala ao saber que nem mercúrio cromo cura aquela doença horrível.
Somem com Tupi e a casa fica em silêncio de dia. Coisa muito estranha: silêncio é coisa de noite. O Pai sai para trabalhar e a Mãe desvela-se em cuidados e atenções. E ele constata que quando Tupi morre ele pode tomar banho de mangueira, molhar o chão e comer fora da hora do almoço e não ir ao maternal que não acontece nada. Coisa mais esquisita. E ele não sabe, mas o que sente, pela primeira vez na vida, é tristeza. Mudo, ele anda pela casa vendo ausência em cada canto. Ele também não sabe o que é isto, mas sente.
A Mãe, preocupada, telefona para o pediatra. Nada a fazer, carinho ajuda. Vai passar. O primeiro contato é assim mesmo. O Pai chega do trabalho e o põe no colo. Fala que vai comprar um cachorrinho lindo que ele passa a detestar naquele mesmo momento.
Coisas muito estranhas acontecem por causa da morte de Tupi: ninguém fala na hora de dormir, ninguém insiste para que ele coma espinafre. Mais estranho ainda, o Pai coloca um colchão ao lado de sua cama e informa que vai dormir com ele!  E na mesma hora em que ele for dormir! E essa hora não tem hora!! Vai ser quando ele quiser. E de repente ele passa a querer só para ver o que de mais esquisito vai acontecer. Instalado entre as cobertas olha para o Pai que lê com a ajuda de um pequeno abajur, colocado no chão ao lado do colchão e se perde em pensamentos.
E foi ai que se instalou o horror. O menino faz, pela primeira vez na vida, uma inferência. E esta é trágica. Numa voz insegura, beirando o choro que havia se recusado aparecer até ali, ele chama: Pai!  O Pai levanta os olhos do livro e apavorado escuta a pergunta que temia e que em algum momento viria: Você vai morrer? Não vai dar pra mentir agora e, cauteloso, ele explica: vai morrer, sim. Mas vai demorar muito, muito tempo. Só vai acontecer quando estiver velho, muito velho e com vontade de descansar. Ele, o menino, vai estar velho também. Muito velho. Afirma categórico: você já vai ter filhos e muitos netos quando Papai morrer. Agora dorme.
O menino se ajeita nas cobertas e fecha os olhos. O Pai aliviado volta à leitura. Deu certo! Passam-se alguns minutos e lá vem a voz trêmula de novo: Pai! Mamãe vai morrer? O Pai, agora mais seguro com o sucesso na primeira explicação, anima-se repetindo a história e animado, acrescenta bisnetos à descendência que se fará presente na época em que se der a morte da mãe. De novo, carinhoso, pede: agora dorme, meu filho.  Comovido olha para o menino que obediente fecha os olhos e parece dormir.
Volta ao livro e um longo tempo se passa até que volte a voz na pergunta que o deixa gelado: Pai! Eu vou morrer? Agora danou-se, pensa o Pai. Esquecido de todas as regras que sempre se impôs de bem informar o filho dizendo a verdade, não só repete a descrição da morte do menino rodeado de filhos, netos, bisnetos e tataranetos, como assegura que ele partirá radiante porque irá ao encontro dele Pai, da Mãe e, sobretudo, de Tupi que lá o aguarda saltitante. Os três o estarão esperando numa casa linda cheia de macacos nas árvores (o menino adora macacos). Perde-se numa descrição mirabolante desta moradia celeste. E ao terminar, censurando-se pela covardia e muito culpado, implora: agora dorme, meu filho
O silêncio agora se estabelece por muito tempo e o Pai consegue se desculpar: o importante agora era trazer a paz para aquela cabecinha atormentada. Mais tarde a verdade se instalará, naturalmente, em toda sua crueza. Mas não precisa ser agora. Ele é tão pequeno! Está exausto. Amanhã as coisas estarão mais diluídas e quem sabe o novo cachorrinho... e é ai que escuta a voz que agora vem carregada de espanto monumental: Pai! Que loucura, heim?!

2008

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