A morte do Tupi, assim de repente, causa uma devastação na
cabecinha do menino. Em seus quatro anos morte é um fato totalmente
desconhecido e a compreensão de que cachorro que morre não late, não come, não
pula e não lambe o rosto, é muito difícil, se não impossível.
O Pai e a Mãe desdobram-se em explicações e numa concessão
extrema (já que não aprovavam mentiras) enviam Tupi a caminho do céu onde irá
brincar com anjinhos, nas nuvens. O menino detesta esta idéia. Os anjinhos que
arranjem outro cachorro pra eles! Por
que é que não levaram o cachorro do Tico? Numa última tentativa para acabar com
aquele horror, ele pede: e se passar mercúrio cromo nele? Quem sabe
aquele miraculoso remédio vermelho que não arde restabelecerá a normalidade, o
todo dia gostoso, o acordar com uma lambida. Uma enorme sensação de insegurança
se instala ao saber que nem mercúrio cromo cura aquela doença horrível.
Somem com Tupi e a casa fica em silêncio de dia. Coisa muito
estranha: silêncio é coisa de noite. O Pai sai para trabalhar e a Mãe
desvela-se em cuidados e atenções. E ele constata que quando Tupi morre ele
pode tomar banho de mangueira, molhar o chão e comer fora da hora do almoço e
não ir ao maternal que não acontece nada. Coisa mais esquisita. E ele não sabe,
mas o que sente, pela primeira vez na vida, é tristeza. Mudo, ele anda pela
casa vendo ausência em cada canto. Ele também não sabe o que é isto, mas sente.
A Mãe, preocupada, telefona para o pediatra. Nada a fazer,
carinho ajuda. Vai passar. O primeiro contato é assim mesmo. O Pai chega do
trabalho e o põe no colo. Fala que vai comprar um cachorrinho lindo que ele
passa a detestar naquele mesmo momento.
Coisas muito estranhas acontecem por causa da morte de Tupi:
ninguém fala na hora de dormir, ninguém insiste para que ele coma espinafre.
Mais estranho ainda, o Pai coloca um colchão ao lado de sua cama e informa que
vai dormir com ele! E na mesma hora em
que ele for dormir! E essa hora não tem hora!! Vai ser quando ele quiser. E de
repente ele passa a querer só para ver o que de mais esquisito vai acontecer.
Instalado entre as cobertas olha para o Pai que lê com a ajuda de um pequeno
abajur, colocado no chão ao lado do colchão e se perde em pensamentos.
E foi ai que se instalou o horror. O menino faz, pela
primeira vez na vida, uma inferência. E esta é trágica. Numa voz insegura,
beirando o choro que havia se recusado aparecer até ali, ele chama: Pai!
O Pai levanta os olhos do livro e apavorado escuta a pergunta que temia
e que em algum momento viria: Você vai
morrer? Não vai dar pra mentir agora e, cauteloso, ele explica: vai morrer,
sim. Mas vai demorar muito, muito tempo. Só vai acontecer quando estiver velho,
muito velho e com vontade de descansar. Ele, o menino, vai estar velho também.
Muito velho. Afirma categórico: você já
vai ter filhos e muitos netos quando Papai morrer. Agora dorme.
O menino se ajeita nas cobertas e fecha os olhos. O Pai
aliviado volta à leitura. Deu certo! Passam-se alguns minutos e lá vem a voz
trêmula de novo: Pai! Mamãe vai morrer?
O Pai, agora mais seguro com o sucesso na primeira explicação, anima-se
repetindo a história e animado, acrescenta bisnetos à descendência que se fará
presente na época em que se der a morte da mãe. De novo, carinhoso, pede: agora dorme, meu filho. Comovido olha para o menino que obediente
fecha os olhos e parece dormir.
Volta ao livro e um longo tempo se passa até que volte a voz
na pergunta que o deixa gelado: Pai! Eu
vou morrer? Agora danou-se, pensa o Pai. Esquecido de todas as regras que
sempre se impôs de bem informar o filho dizendo a verdade, não só repete a
descrição da morte do menino rodeado de filhos, netos, bisnetos e tataranetos,
como assegura que ele partirá radiante porque irá ao encontro dele Pai, da Mãe
e, sobretudo, de Tupi que lá o aguarda saltitante. Os três o estarão esperando
numa casa linda cheia de macacos nas árvores (o menino adora macacos). Perde-se
numa descrição mirabolante desta moradia celeste. E ao terminar, censurando-se
pela covardia e muito culpado, implora: agora
dorme, meu filho.
O silêncio agora se estabelece por muito tempo e o Pai
consegue se desculpar: o importante agora era trazer a paz para aquela
cabecinha atormentada. Mais tarde a verdade se instalará, naturalmente, em toda
sua crueza. Mas não precisa ser agora. Ele é tão pequeno! Está exausto. Amanhã
as coisas estarão mais diluídas e quem sabe o novo cachorrinho... e é ai que
escuta a voz que agora vem carregada de espanto monumental: Pai! Que
loucura, heim?!
2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário