Hoje falo do passado. E põe passado nisto!
Coisas que ocorreram com alguém cuja beleza e juventude nada têm a ver comigo.
Porque Eudoxia, a heroína desta história, era deslumbrantemente bela. E foi
esta beleza que lhe valeu riqueza e fausto jamais sonhados naquela casinha onde
vivia à margem da estrada poeirenta, onde cuidava dos porcos, fonte de renda da
modesta família.
Por artes do destino um dia por lá apareceu
garboso em seu cavalo negro, um meu antepassado. E pelas mesmas artes, no exato
momento em que passava em frente à casa de Eudoxia, porcos em fuga desabalada
cruzaram a estrada, assustando o corcel. Aos pinotes este arremessou ao chão o
rapaz (era ainda muito jovem) que desmaiou. Ao que se conta quando abriu os
olhos deu com o rosto de Eudoxia que se curvara sobre ele, tentando reanimá-lo.
Faltou-lhe o ar, pensou ter morrido: só podia ser um anjo! Quando se deu conta
de que não era e que, ao contrário, havia muita carne e muito osso... perdeu-se
de amores.
De
nada valeram a fúria do pai e os chiliques da mãe que gritava “meus sais, meus
sais”, ameaçando desfalecer em meio ao choro convulso: casava-se ou definharia
do mal de amor! Conta a história que de fato começou a definhar a olhos vistos
e a escrever poesias fazendo com que os pais, que não o queriam nem morto nem
poeta, consentissem nas bodas. Deram um banho de loja em Eudoxia que se deixou
embonecar e ficou mais linda ainda. Tímida, era praticamente muda incapaz de
emitir um som diante da rispidez da sogra e sisudez do sogro. Para o noivo
apenas sorria e deixando escapar entre os lábios um doce Meu senhor... cujas reticências
revelavam promessas de prazeres inimagináveis. Tivesse falado, ainda que pouco,
antes de consumar-se o casamento, este talvez não houvesse ocorrido.
Mas o fato é que não falava. Começou a
fazer isto muito depois, quando lhe morreu a sogra (dizem que de desgosto). E,
no que o fez, revelou-se sua monumental e espantosa ignorância. Era uma
ignorância sólida e definitiva, resistente a qualquer aprendizado. Ou porque não
queria aprender ou por que não podia. Em vão o marido tentou. Acabou por
desistir e refugiando-se numa relação muda que só era sustentada (segundo
contam) pelas noites em que o desempenho de Eudoxia era tão portentoso quando
sua ignorância.
O sogro, um homem culto que lia francês,
não suportando as barbaridades proferidas pela nora, mudou-se para uma de suas
outras fazendas deixando espaço para que Eudoxia, reinando soberana na imensa
casa da fazenda, começasse a se dar ares de grande dama.
Se não abrisse a boca poderia até passar
por uma. Tinha um extraordinário talento para imitar posturas, gestos e
maneirismos das senhoras das fazendas vizinhas, estas sim, de nobre estirpe.
Teria sido uma grande atriz. E de certo modo o era, pois os fazendeiros lindeiros
e suas famílias disputavam convites para os muitos jantares e ceias organizados
por Eudoxia, nos quais lhes era oferecido o espetáculo de suas espantosas
falas.
As
frases proferidas por Eudoxia eram de um ineditismo nunca visto e eram
declamadas na mais perfeita impostação e com a nobre pose que havia
incorporado. Impiedosos, e para tristeza e desânimo de meu antepassado, os
visinhos rivalizavam-se na arte de conduzir a conversa para assuntos que
garantissem o enunciado de algumas expressões que já faziam parte do anedotário
local. Como por exemplo: “piano em calda” pela qual D. Eudoxia designava o
magnífico instrumento que adornava o salão. Mas a fama que lhe valeu registro em
documentos guardados no Arquivo Nacional vem de um relato em que a platéia foi
nada menos que o imperador Pedro I.
Não se
pode afirmar, mas D. Pedro, femeeiro por excelência (delicioso adjetivo com que
o descreveu o historiador Otávio Tarquínio de Souza), pode ter tido notícia da
beleza de D. Eudoxia e quem sabe esperançoso de algum favor da bela senhora,
resolveu conferir. Como a fazenda ficava no caminho para São Paulo, nela
decidiu pernoitar em uma de suas viagens. Mesmo hoje em dia nunca se sabe o que
pode resultar de um pernoite, não é?
Um
mensageiro foi despachado para avisar o casal da honra que lhe seria concedida
e, como é próprio de mensageiro de imperador, incorporou a importância do amo e
adentrou a sala sem se fazer anunciar. D. Eudoxia indignada com esta intrusão
indevida, proferiu a deliciosa interpelação: E quem diremos que os senhores é?
Este espantoso modelo de
concordância não deve ter sido repassado ao Imperador antes de sua chegada.
Caso o houvesse sido ele teria escolhido melhor palavra para compor uma
pergunta que fez à senhora, no dia seguinte, e que permitiu à bela engendrar a
resposta que a tornou conhecida até os dias de hoje. Documentos relatam: D.
Pedro, na manhã seguinte ao pernoite, em companhia dos anfitriões inspecionou
os arredores da casa. Ao defrontar-se com o açude dispara ele a pergunta cruel:
Senhora D. Eudoxia, é este açude
piscoso? Com um fino sorriso e do
alto de sua importância, sem a menor hesitação e certa do que dizia ela
respondeu: quando chuvisca ele pisca!
2005
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