O
telefone toca às três da manhã. Coração na boca atende apavorada. Boa coisa não
deve ser. Meu Deus! Fica calma, fica calma. A voz é desconhecida: é você?! Não é grave. Engano
talvez. Não sei se sou eu. Com quem você quer falar? A voz diz seu nome.
É, é meu nome. E você, quem é?
O retorno soa decepcionado: não lembra
mais da minha voz? Não. Dessa voz, não. Na verdade esqueceu muitas. Elas,
as vozes, se perdem no tempo ou envelhecem, sei lá. É... provavelmente
envelhecem. Melhor me dizer logo quem
é você. Embasbacada escuta e emudece. A voz insiste: nem do nome você lembra? Lembro. Lembro, sim. O tom soa carinhoso: como é você está? Sem
pensar, dispara: dormindo! A voz, que agora tem nome, denuncia decepção:
você continua respondona!
Respondona! Ninguém mais diz isto! Respondona?! Talvez. Talvez seja. A voz fala
alguma coisa, mas ela perdeu-se no respondona e, de longe, de muito longe
escuta o tom severo da mãe: respondona!.
Há milênios! É, eu era respondona, sim! O
que? Desculpa! Um barulho na
linha. Não escutei. Perguntei
se você continua bonita. Eu, heim?! Como é que eu vou responder a uma
barbaridade destas: o sim é cabotino. O não é um demérito! Sai pela tangente: e você, como está? Piorou: triste. Estou triste. E agora? Se perguntar por que ele é capaz de dizer e
são três horas da manhã! E cedo ela tem hora no dentista. Parte para o absurdo:
você tem medo de dentista? Ele
assombrado: o quê? Não dá pra
dar marcha à ré. Repete: dentista. Tem
medo? Eu tenho. Não adianta. Ele insiste nas lembranças: você não tinha medo de nada. Soa como
um elogio. Veemente, afirma: tinha,
sim. Continuo a ter. De barata! Ele se irrita: assim não vamos chegar a lugar nenhum! Agora
a irritação é dela: e onde é que você
quer chegar?! Horror! Será que ele sempre foi assim? Você está sendo cruel! Foi muito difícil
ligar depois de todos estes anos! Meu Deus! Quase cinqüenta, deve ser!
Que tipo de pessoa acorda alguém com quase cinqüenta anos de atraso? Deve ter sido difícil, sim! Ligar para alguém
às três da madrugada deve ser terrivelmente desagradável. E lá vem de
novo a recriminação: você continua a
mesma. Mesma como? Ah! Deve ser o medo: claro! Medo de barata não some. É um traço pessoal. Quem tem, tem. Quem
não tem, não tem. Ele fala alguma coisa, mas ela perdeu-se, agora em
suas próprias palavras: não acredito que eu disse esta besteira. O horror vem
agora no final de uma falação não escutada: me escuta. Por favor me
escuta! Você vai me escutar?
Ele tem uma habilidade espantosa para impossibilitar um sim ou um não! Ele
entende que o silêncio como SIM e vem o
tom do início de alguma coisa longa. Muito longa. Tenho pensado muito em você. A lembrança me atormenta. Muita coisa
ficou por falar, naquela época... Perde-se de novo: que época exatamente
era esta? Procura situar. Fica tudo um tanto embaralhado. Percebe o ponto de interrogação no final de
uma frase: ... você não acha? E
agora? Talvez sim, talvez não!
Pronto. Dei jeito. Por que a dúvida?
Você não era assim! De novo!
Ela pensa rápido: tem que dar um fim nisto. Impedindo uma intervenção do outro
lado da linha ela fala de um fôlego: você
disse que eu continuava respondona. E tem toda razão. Sobretudo a esta hora. Me liga outro dia. Agora só
consigo pensar na barata, isto é, no dentista. Foi bom falar com você. Foi uma
surpresa incrível. Desliga e
deixa o telefone fora do gancho. Antes de fechar os olhos pensa: que absurdo
alguém ligar a esta hora para falar de dentista e barata!
2005
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