quinta-feira, agosto 15, 2013

ROMANCE NA MADRUGADA

O telefone toca às três da manhã. Coração na boca atende apavorada. Boa coisa não deve ser. Meu Deus! Fica calma, fica calma. A voz é desconhecida: é você?! Não é grave. Engano talvez.  Não sei se sou eu. Com quem você quer falar? A voz diz seu nome. É, é meu nome. E você, quem é? O retorno soa decepcionado: não lembra mais da minha voz? Não. Dessa voz, não. Na verdade esqueceu muitas. Elas, as vozes, se perdem no tempo ou envelhecem, sei lá. É... provavelmente envelhecem. Melhor me dizer logo quem é você. Embasbacada escuta e emudece. A voz insiste: nem do nome você lembra? Lembro. Lembro, sim.  O tom soa carinhoso: como é você está?  Sem pensar, dispara: dormindo!  A voz, que agora tem nome, denuncia decepção: você continua respondona! Respondona! Ninguém mais diz isto! Respondona?! Talvez. Talvez seja. A voz fala alguma coisa, mas ela perdeu-se no respondona e, de longe, de muito longe escuta o tom severo da mãe: respondona!. Há milênios! É, eu era respondona, sim! O que? Desculpa! Um barulho na linha. Não escutei. Perguntei se você continua bonita. Eu, heim?! Como é que eu vou responder a uma barbaridade destas: o sim é cabotino. O não é um demérito! Sai pela tangente: e você, como está? Piorou: triste. Estou triste. E agora?  Se perguntar por que ele é capaz de dizer e são três horas da manhã! E cedo ela tem hora no dentista. Parte para o absurdo: você tem medo de dentista? Ele assombrado: o quê? Não dá pra dar marcha à ré. Repete: dentista. Tem medo? Eu tenho. Não adianta. Ele insiste nas lembranças: você não tinha medo de nada. Soa como um elogio. Veemente, afirma: tinha, sim. Continuo a ter. De barata! Ele se irrita: assim não vamos chegar a lugar nenhum! Agora a irritação é dela: e onde é que você quer chegar?! Horror! Será que ele sempre foi assim? Você está sendo cruel! Foi muito difícil ligar depois de todos estes anos! Meu Deus! Quase cinqüenta, deve ser! Que tipo de pessoa acorda alguém com quase cinqüenta anos de atraso? Deve ter sido difícil, sim! Ligar para alguém às três da madrugada deve ser terrivelmente desagradável. E lá vem de novo a recriminação: você continua a mesma. Mesma como? Ah! Deve ser o medo: claro! Medo de barata não some. É um traço pessoal. Quem tem, tem. Quem não tem, não tem. Ele fala alguma coisa, mas ela perdeu-se, agora em suas próprias palavras: não acredito que eu disse esta besteira. O horror vem agora no final de uma falação não escutada: me escuta. Por favor me escuta! Você vai me escutar? Ele tem uma habilidade espantosa para impossibilitar um sim ou um não! Ele entende que o silêncio como  SIM e vem o tom do início de alguma coisa longa. Muito longa. Tenho pensado muito em você. A lembrança me atormenta. Muita coisa ficou por falar, naquela época... Perde-se de novo: que época exatamente era esta? Procura situar. Fica tudo um tanto embaralhado.  Percebe o ponto de interrogação no final de uma frase: ... você não acha? E agora? Talvez sim, talvez não! Pronto. Dei jeito. Por que a dúvida? Você não era assim! De novo! Ela pensa rápido: tem que dar um fim nisto. Impedindo uma intervenção do outro lado da linha ela fala de um fôlego: você disse que eu continuava respondona. E tem toda razão. Sobretudo a esta hora. Me liga outro dia. Agora só consigo pensar na barata, isto é, no dentista. Foi bom falar com você. Foi uma surpresa incrível.  Desliga e deixa o telefone fora do gancho. Antes de fechar os olhos pensa: que absurdo alguém ligar a esta hora para falar de dentista e barata!
2005


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