quinta-feira, agosto 29, 2013

INSÔNIA

Deitados na grama os primos olham o céu estrelado. Noite quente de verão, mas uma brisa suave move ligeiramente os galhos dos pinheiros altos, tão altos que parecem chegar até as estrelas que repartem. Por é isto que eles estão fazendo: repartindo estrelas. De há muito se apossaram do céu que foi dividido entre os quatro. Faz tempo. Eram pequenos. Desde então são proprietários do espaço celeste e não podem dele se descuidar.
É sempre assim: terminado o jantar naquela mesa grande onde a Avó reina soberana, correm para a grama. E a conversa rola mansa e séria. Muito séria. Sob o céu repartido falam de seus sonhos. Só que não os sabem como tal. Há uma certeza daquilo que vai acontecer. Talvez porque donos de um céu estrelado nada lhes pareça impossível.  Nem mesmo o haras que vão ter um dia. Só há uma pequena divergência quanto ao nome: Ventania. Tem que ser Ventania, insiste a mais velha. Os outros discordam. Por que o nome do cavalo dela? Ela não tem argumentos e vai daí que desiste da discussão deste pequeno detalhe. Porque não querem brigar. Nunca o fazem.
Como um só bloco agem e reagem desde o momento em que se encontram na estação para subir a serra, nas férias. São quase três meses de um convívio mágico naquele sítio para onde se mudam bem antes do Natal, assim que terminam as aulas. E a Avó assume suas vidas. Os pais e tios vêm e vão, chamados ao Rio por trabalhos e compromissos e eles ficam naquele mundo mágico onde tudo pode.
A repartição de cada lote celeste foi feita com a ajuda dos galhos mais altos das árvores que os viram nascer e que, observados do leito de grama, parecem tocar o céu definindo os limites. São estes os marcos de posse plantados no céu, mas não na terra. A terra do sítio é bem comum que exploram e percorrem sem cessar, em bando. Só voltam para casa quando o sino energicamente tocado pela avó os convoca. Foi tentado um toque para cada um. Inútil: à primeira badalada precipitavam-se todos, correndo para ver quem chegava primeiro. Jamais lhes ocorreu não responder ao chamado. A Avó, muito sábia, só os chama para coisas boas: almoço, lanche e jantar. Porque eles vivem famintos ainda que se fartem de frutas colhidas no pé e das cenouras cruas que dividem com os cavalos.
Conhecem cada palmo de terra do sítio e agora se empenham na exploração da mata da Boa Vista que só recentemente deixou de ser território proibido. Foi solene a comunicação da Avó de que já poderiam por lá se aventurar. Já eram “grandes”. Acompanhados por seu Teófilo entraram pela primeira vez para conhecer as trilhas, os buracos de tatu, os ninhos das seriemas, as moitas venenosas, os pios dos nambus.
Agora que já se aventuram sozinhos, lhes cabe o encargo de trazer palmito para o jantar. Nestas expedições as conversas são muito diversas daquelas da grama, à noite. Nem mesmo poder-se-ia chamar de conversa aquelas comunicações sobre o que vêem, sobre o que descobrem. As reflexões sobre o ocorrido só vêm à noite, na grama, quando voltam os olhos para seu pedaço de céu.  Ai, sim, filosofam sobre o que viram. Falam tudo que lhes vem à cabeça até que o sono se instale gostoso, dificultando a fala e o pensar, mas não o sentir. E é então que eles sentem que são felizes. Muito felizes.
Existe também a caixa de tesouros, escondida em baixo do cocho do abandonado rancho de sal. Nela amontoam-se achados e objetos preciosos. A alguns atribuíram mágicos poderes que invocados em horas de aflição, sempre surtem efeito. Foi assim quando Ventania ficou doente. Reuniram-se no rancho em torno da maçaneta de vidro colorida, um dos tesouros mais lindos, e pediram, pediram muito para que arribasse. E arribou!
Aquela enorme chave de ferro que encontraram naquela manhã, num oco de pau, na mata da Boa Vista, é mágica. Com certeza! Vai ver abre qualquer porta. Até a da despensa onde se enfileiram os potes de coalhada, cobertos por panos de filó com franjas de contas de cristal. Amanhã a chave será levada para se juntar aos tesouros. 
Um deles diz sorrindo: ah! Se a gente pudesse guardar nela pelo menos uma estrela. Os outros riem, mas pensam que seria bom se pudesse. Assim ao abrirem a tampa ficariam iluminados pelo brilho que se grudaria neles como poeira. E também eles se tornariam encantados. A chave passa de mão em mão. E eles inventam: se apertar bem, fechando os olhos ela atende qualquer pedido. 
O som das vozes dos tios, tias e pais que vem do lá dentro onde a luz do lampião pinta tudo de uma cor diferente, traz uma sensação de proteção que conduz ao sono e ao sonho. E então eles dormem sob o céu estrelado que lhes pertence.

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Não mais deitamos na grama; não mais olhamos o céu. Não há em nossa caixa de tesouros uma só estrela. E o sono, porque não precedido de beleza, não vem.

2006

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