segunda-feira, agosto 12, 2013

O SALTO

Até hoje se lembra do frio na barriga que sentiu ao ouvir da avó: este ano você representa a família no torneio. Olha suplicante para o tio cavaleiro. Tudo que consegue é um sorriso. Mas como? Era sempre ele a montar! Ouve o risinho maldoso da prima falando baixinho: estás frita!  No jantar a família entusiasmada faz pressão. Até mesmo os tios literatos que pouca ou nenhuma importância dão aos acontecimentos eqüestres, se manifestam: procure escrever sobre sua vitória. Temos ai um conflito interessante. Ele vai competir, não vai? Ele é o recente namorado! E põe conflito nisto! Se eu ganho, ele nunca vai me perdoar – ela pensa - se eu perco vai ser um Deus nos acuda por aqui.

O pai percebe a aflição: não fique assim minha filha! É só uma competição.  Não é uma questão de estado!  E a avó: tudo que envolve esta família é uma questão de estado. E ela, aflita: eu vou ganhar vó! O pai sorri: é preciso conviver com derrotas, minha filha. A avó não deixa passar: convive-se com derrotas e prepara-se para vitórias. E o pai ainda sorrindo: prepara-se para a vida, minha sogra! Droga de vida, ela pensa! O tio jogador balança a cabeça: belo jogo... o resultado, veremos!  O tio pediatra vocifera: não admito derrota! Nunca!

Terminado o jantar ela demanda às cocheiras. Dream Boy surpreende-se. Ela nunca vem a esta hora. Mais surpreendente ainda o que ela diz: Dream, você vai ter que ganhar. Se perder, eu morro... ou me mato!
  
No dia seguinte todos já sabem. A prima é uma falastrona. E o namorado informa belicoso: passei um metro e quarenta na cancela, com Bandoleiro. Sem forçar. O seu animal como está? Desgraçado! Animal é ele. E a relação entre os dois fica estranha até que chega o dia.

E o que é pior chega o desempate. Só sobraram eles dois. Perfilados em suas montarias, aguardam a chamada. O tio cavaleiro aproxima-se: vai ser sopa, meu bem. Bandoleiro não está subindo bem as dianteiras. Ela evita olhar para o namorado enquanto o tio sobe a vara do obstáculo, mas sente que ele está sorrindo. Entra na pista e contorna o obstáculo duas vezes para acalmar Dream que está indócil e nervoso. Ela o reconduz à calma. Sente sobre si o olhar do namorado. Faz uma aproximação perfeita. As dianteiras passam o varal... que tomba sob o impacto das patas traseiras!. Ela ainda ouve o OH! da assistência antes de partir num galope desabalado, abandonando a pista, fugindo pasto a cima.

Só retorna à casa pouco antes do jantar. Contrita aproxima-se da avó para ouvir o que sabia certo: vamos ao quarto de seu avô.  Quarto que era mantido há mais de 30 anos exatamente como no dia em que ele morreu. Uma espécie de santuário onde só entravam em ocasiões muito solenes e, absurdamente, para escolher as fantasias dos muitos carnavais que lá ficavam guardadas numa cômoda! A avó sentada ao lado do retrato do avô, morto muito antes dela nascer, olha severa por cima dos óculos: o que você fez foi indigno. Envergonhou a família em frente daquela... gente! Se não era capaz de vencer, o que já é grave, pelo menos enfrentasse a derrota com dignidade. Seu avô ficaria muito decepcionado com você. Ela ainda tenta uma saída: eu gostaria de ter conhecido ele. Mas de nada adianta porque a conclusão é implacável: não sei se existem medidas capazes de apagar a humilhação que sofremos. É importante que você sinta o peso do que fez. Não quero desculpas. Não existem para fato tão grave. Agora saia.

No quarto arruma-se para o jantar em companhia da prima que se espanta: no quarto dele?  Cruzes. Foi pior do que eu pensava. As duas param de falar para escutar os gritos do tio pediatra que vêm da sala: chicote! Merece chicote!  Depois todos falam ao mesmo tempo só dando para identificar uma ou outra palavra. Todas terríveis. Ela está indecisa quanto à roupa a botar e olha em dúvida um vestido: será que este vai me ajudar a enfrentar?  E a prima: te prepara, vai ser um Deus nos acuda!  Uma imprecação do tio pediatra se faz ouvir acima do vozerio e a prima comenta: hoje ele quebra a louça toda. Desconsolada ela pensa: hoje nem papai me ajuda. Ele pouco se importava de eu ganhar, mas fugir...

Para piorar a prima informa: ele passou lindo! Tava com uma cara de vitória que só vendo. E o tio, quando a gente ia saindo, esbarrou de propósito no cavalo dele e disse: tira este pangaré daqui. Ela pergunta: e vó, fez o que? A prima ri: mandou a gente aplaudir... sem muito entusiasmo. Depois todo mundo veio pra casa querendo seu couro. Toma coragem: e papai? E veio o que já sabia: tava triste de você ter fugido. Ela suspira fundo. A prima, solidária, passa o braço por cima de seu ombro e abraçadas se dirigem para a sala de jantar.

Um silêncio se faz à entrada das duas quando se escuta a voz do tio pediatra para a filha: proteger sua prima não vai fazer dela um homem!  Gargalhada geral! O riso recrudesce quando se ouve a voz da tia literata, sua cunhada: você tem uma enorme dificuldade em encontrar palavras corretas que expressem suas idéias. E, a partir daí, passam todos participar entusiasmados da discussão que se estabelece encerrando para todo sempre o gravíssimo e vergonhoso episódio.   

Que saudade!
2008


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