Já vão mais de trinta anos. O filho é
hoje um senhor de cinqüenta e dois, bom profissional, bom filho e bom pai. A
avó se já foi e ele se revelou um bom neto até sua morte. Mas nada indicava que
assim seria. Até os vinte se meteu em peripécias que fariam o encanto de
qualquer psicóloga especializada na infância ou na adolescência. Era o
preferido da avó, que lhe fazia todas as vontades; da babá que o idolatrava
tendo conseguido desbancar todos os anteriores “babasados” por ela desde muitos
anos na família e... responsável por sustos e noites sem dormir da mãe
espaventada com as conseqüências de seus atos.
Na verdade até hoje ela não se refez
de um deles ocorrido aos dez anos do filho. Os pais separados, havia já algum
tempo, se entendiam bem no dizia respeito aos filhos. Foi assim que se deu uma
reunião do ex-casal, num dia em que o pai veio buscá-lo para passar o fim de
semana. O tema era a decisão sobre o que fazer para vencer o estado de
obesidade em que ingressava o pimpolho. Tudo já havia sido tentado. Regime nem
pensar. Babá e Vovó encarregavam-se de prover uma alimentação suplementar
secreta que seria mais apropriada a um elefante bebê. A mãe havia tido notícia
de um SPA infantil e era sobre esta possibilidade que discutiam sem perceber
que eram escutados pelo menino atrás da porta. Não chegaram a um acordo naquele
dia e o pai partiu com o filho.
A mãe dirigiu-se ao quarto do menino
para, resignada, arrumar a desordem costumeira sempre encontrada e também para enfrentar quaisquer outras surpresas que vez por outra incluíam a
presença de seres vivos. Em cima da cama encontra um manuscrito em letras
garrafais. Tratava-se de uma lista de ameaças, devidamente numeradas e
justificadas pelo cabeçalho: CASAIS QUE SE SEPARAM DEVERIAM DISCORDAR SEMPRE!
SE VOCÊS ME INTERNAREM NUM SPA, EU VOU... Seguia-se a lista que começava com um
terrível prognóstico. CRIAR BARATAS NO MEU QUARTO e terminava com a ameaça
maior e que até hoje assombra a pobre mãe: NUNCA VOU TER COMPLEXO DE ÉDIPO.
Babá e Vovó gostaram muito da lista mesmo porque eram totalmente contra o SPA
que rotularam de nazismo, de tortura e de ação digna de uma abominável madrasta. Que
engraçadinho, disseram elas. Ele é
tão inteligente.
A obesidade foi resolvida pela ação
de uma excelente psicóloga embora a primeira consulta tenha sido traumática
para a mãe. O consultório era perto de casa não justificando a ida de
carro. E foi assim que os passantes na rua se divertiram com a cena da moça
atracada ao filho muito gordo tentando fazê-lo mover-se enquanto ele se
agarrava em portões, grades, postes e o que mais houvesse, pela recusa em
comparecer a uma médica de malucos (assim definida por ele).
E assim foram vivendo, numa
multiplicidade de extraordinários incidentes, até a adolescência quando já um
belo rapaz de dezoito anos apaixonou-se por uma menina um pouco mais moça. A
menina era órfã e criada por uma tia com a qual não se entendia bem. A esta
altura da vida o rapaz também fazia declarações inflamadas contra o “sistema”. Argumentos
poucos. Era contra e pronto. A mãe até achou que isto era o menor dos problemas
e jamais poderia imaginar o que se seguiu em função desta nova diretriz.
Num sábado de manhã acorda de bem com
a vida. Havia comprado um novo carro, o primeiro que possuía com ar
refrigerado. Fazia um lindo dia e pretendia ir à praia. Ao passar pela sala
dirigindo-se para cozinha para tomar café, vê um cartaz colado na porta de
entrada, com um grande coração desenhado: MÃE! VOU ABRIR! LEVO COMIGO MEU AMOR.
LEVO TAMBÉM SEU CARRO QUE EU AVISAREI EM QUE ESTACIONAMENTO ESTÁ (NO PAÍS). TE
AMO, MUITO, MUITO!
Em estado de choque liga para as duas
primas que sempre funcionaram como suas irmãs. Estas se fazem presentes de imediato.
A mais moça e mais prática começou uma busca no quarto do fujão para ver se
encontrava alguma pista. A outra, sempre inesperada, munida de um queijo brie
obrigava a mãe a engolir pedaços enormes em cima de torradas mínimas. A busca
da prima prática deu frutos: um endereço em São Paulo. Imediatamente esta se
dirige ao telefone para pedir a outro primo que lá morava para que fosse ao
endereço encontrado visando localizar o carro, o filho e a namorada. Mesmo desorientada a mãe segue ansiosa a
conversa ao telefone e percebe que à medida que esta prosseguia a expressão da
prima ia ficando cada vez mais desanimada. Ela desliga o telefone e comunica: ele não vai fazer nada. Disse que você tem é
sorte. O filho dele fugiu para Serra Pelada!
À noite um telefonema do filho. Vai
voltar porque decidiu ir morar, fora do sistema, em Arraial da Ajuda, na Baia. De fato assim o
fez. Devolvido o carro ele parte com as bênçãos da mãe, mas com a advertência
de que quem “sai do sistema” tem que aprender a viver sem as benesses deste.
Portanto não haveria dali por diante qualquer ajuda financeira para financiar
uma decisão com a qual não concordava. E lá se vai o casal para morar numa casa
de pescador e viver da venda de bolinhos de aipim na praia!
Um dia em casa da avó, a mãe a
encontra na companhia de uma amiga. Diverte-se com a pergunta que lhe faz a
senhora imaginando o assombro e a censura que causará a resposta: e seu filho mais moço? O que está fazendo?
Antes que a mãe pudesse responder a avó interrompe. Com um encantador sorriso, plena de orgulho,
lança o mais extraordinário eufemismo: Está
na Bahia. Montou, imagine só, aos dezoito anos, um empreendimento no ramo de
alimentos!!
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