A descoberta de que a patente de meu marido poderia ser a mim
também conferida foi uma das muitas surpresas que tive ao ingressar, aos
dezenove anos, no ambiente militar da Base Aérea de Natal. E não foi das mais
agradáveis. Esta patente era a mais baixa na cadeia hierárquica de oficiais e naquela idade
eu me julgava o máximo. Isto causou um enorme descompasso entre poder e ser
naquele mundo para mim tão estranho.
Logo de saída fiquei sabendo que as casas reservadas para
oficiais não eram para meu bico. Eram destinadas a capitães e daí pra cima.
Felizmente os americanos, construtores da base, durante a segunda guerra,
haviam deixado abandonadas umas edificações que com poucos ajustes poderiam se
transformar em pequenos apartamentos. Não foi muito fácil convencer meu marido
a solicitar permissão para adaptar uma delas, mas ao final de algum tempo
estava eu agindo como mestre de obras comandando a reforma. Nos fundos um
enorme matagal que eu, imaginosa que era, descrevia como floresta. Ficou linda
nossa casa dotada de uma varanda que fechei com treliças pintadas de branco. O
local era ermo e distante de qualquer vida próxima e só muito tempo depois os
demais segundo tenentes, seguindo nosso exemplo, para lá se mudaram.
Logo que nos instalamos não havia telefone e a solidão
preocupou meu marido que se afligia em me deixar sozinha quando de suas
constantes viagens. Para sua tranqüilidade conseguiu que um sargento, em sua
ausência, dormisse num barracão que existia a poucos metros da casa e ao
alcance de meus possíveis gritos de socorro. Que certamente jamais ocorreriam
já que única ameaça era a existência de minúsculas rãs que surgiam aos pulos
quando se acionava a descarga do banheiro! O perigo real, que sequer
imaginávamos, era o próprio sargento que se revelou um cruel assassino matando
e esquartejando o marido da amante que mantinha na cidade!
Meses após este sanguinolento evento uma Missão Aeronáutica
Francesa veio visitar a Base. Um imponente “Maréchal de l’Air” fazia-se acompanhar de sua marechala e
de outros oficiais também acompanhados de suas femininas patentes. Esta visita
provocou um impasse: as senhoras dos oficiais superiores brasileiros não
falavam francês e o inglês que balbuciavam não ia além do “the book is on the
table”. Era imperiosa uma falante presença feminina no jantar. Os homens
conseguiam se virar em inglês, língua obrigatória na profissão. Mas mulher que
falasse francês e inglês, só eu mesma, a recém chegada segundo tenente, quase
adolescente.
Era uma subversão da hierarquia, mas o jeito foi admitir minha
presença à mesa do jantar de gala entre o Marechal francês e o Brigadeiro
Fontenele que havia sido diretor da Escola da Aeronáutica. Este último era
adorado pelos ex-cadetes, agora recém promovidos a tenentes, seus pupilos num passado
recente. Era carinhosamente (pelas costas) chamado de Fon Fon.
Eu estava me sentindo nas nuvens, finalmente tendo reconhecida
a importância que eu me atribuía. Meu marido já não se sentia tão
confortável habituado que estava a presenciar muitas das minhas manifestações
impróprias. Ele sabia que quanto maior meu entusiasmo, maior a probabilidade de
baixar a personalidade “clumsy” que
até hoje se manifesta. Filho de franceses dominava a língua como se nativo
fosse e por esta razão sentava-se entre a marechala e a senhora do comandante
da Base, bem em frente a mim. Tudo ia indo muito bem e fui até elogiada pelo
marechal e por Fon Fon por minha desenvoltura em francês. Bem melhor teria sido
se o que eu falasse não fosse compreendido porque quando a conversa versou
sobre como por vezes nos enganamos com as pessoas, deu-se a tragédia.
Espevitada e falando alto para humilhar as senhoras de
patente superior que se expressavam por mímica, declarei num francês impecável
a seguinte pérola: a gente se engana
demais com as pessoas. Imaginem que todas as vezes que meu marido viajava, eu
dormia com um sargento encantador, que veio a matar e esquartejar o marido da
amante. E eu que dormia sempre com ele nunca desconfiei de nada! O silêncio
foi sepulcral e eu, percebendo a barbaridade que havia dito, olhei em pânico
para meu marido. A palidez que ele apresentava era impressionante e eu pensei
até que fosse desmaiar o que seria ótimo porque desviaria assim a atenção de
todos.
A marechala apresentava uma expressão de horror e o marechal
deglutiu todo o copo de vinho pedindo reabastecimento imediato que também bebeu
de um só gole. Rezava eu para que fosse acometido de coma alcoólico quando
escuto a voz do querido Fon Fon num esforço para desviar a atenção da
catástrofe. Ou, mais provável, visando identificar o marido daquela doida para
determinar à imediata transferência para algum remoto posto,
Ele perguntava: a
senhora é casada com qual de meus meninos? Ensaio um gesto para indicar
Jean, logo em frente, quando horrorizada vejo a ponta do dedo dele aparecendo
na beirada da mesa sacudindo energicamente de um lado para outro exigindo uma
não identificação. Sua expressão era de fúria incontida. Apavorada e sem saber
o que responder fiz um gesto largo e vago e sai-me desta entaladela, entrando
em outra, declarando em alto e bom som: com
um destes ai!
2009
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