Acho que nem Ionesco não seria capaz de produzir este extraordinário diálogo que mantive com um rapaz coberto de tatuagens no
posto de gasolina do Humaitá. Até hoje não me refiz, confesso, ao perceber que a lógica
que tanto me encanta pode tornar-se um total absurdo.
- Tia, tu tem um celular aí pra me quebrar uma?
O telefone do posto tá fora.
- Não! Mas, meu querido, eu não sou sua tia.
- Eu também não sou seu querido.
- Touché!
- Quê?
- Estou dizendo que você tem razão. Que acertou
na mosca, ou melhor, em mim.
- Essa palavra quer dizer tudo isso? Caraca! É
francês, né?
- É.
- Saquei! Estudei isso. Mas essa palavra, não
dei, não.
- Imagino!
- Tu é francesa?
- Não.
- Então por que tu tá falando francês?
- Saiu sem pensar.
- E quando tu não pensa, tu fala francês?!
- Não! Quer dizer, falo. Ora, sei lá. Que
conversa mais idiota. (...) Moço! Me vê aí um pacote de Free maço.
- Pacote?! Caraca! Tu vai fumar tudo isto?!
- Vou. Quer dizer, não. Ora, é pra ter em casa.
Sabe o que é mais? O que é que você tem com isto?
- Foi mal. Foi mal. Eu não fumo.
- Ótimo! Não deve mesmo.
- Se tu acha isso por que é que ta comprando
cigarro?.
- Me deixa em paz, garoto! Vai cuidar de sua
vida!
- Menos, tia, menos. Manéra!
- Já falei que não sou sua tia.
- Tu pode falar francês e eu não posso falar
tia? Qualé?
- Não gosto de ser chamada de tia, só isto.
- Os filhos de tua irmã te chamam de que?
- De nada. Não tenho irmã.
- Nem irmão?
- Os filhos dele me chamam de tia porque são
meus sobrinhos. Você não é. E pára de me fazer perguntas idiotas!
- De vó, pode?
- O que?!
- Chamar de vó, pode?
- Você não pode me chamar de nada! Não conheço
você e você não me conhece. Eu só vim comprar cigarro e você não sei o que veio
fazer aqui além de me aborrecer.
- Tá legal. Tô mesmo de bobeira. Mas saca só
uma: tu fuma e não pinta os cabelos.
- E daí? O que tem uma coisa a ver com a outra?
- Só tem.
- Tem o quê?
- Agora é tu que tá me fazendo pergunta, sacou?
Ai diz que não é pra falar.
- É que você disse uma coisa sem sentido.
- Jeito maneira! Eu sei da coisa.
- E que coisa é esta que você sabe?
- Prestenção! Uma minha vó não pinta cabelo e
não fuma. Outra minha vó pinta cabelo e
fuma. Sacou essa?
- Não. Não saquei essa porque não faz o menor
sentido.
- Pra tu não faz sentido porque tu quer fumar. Tu
não tá sendo conforme. Agora te peguei!
- Pegou o que, garoto? Que negócio é este de
conforme?
- Tu não sabe?! Tu fala francês e não sabe?
Caraca, tia! Tu não é conforme mesmo.
- Escuta, você não tem mais nada pra fazer,
não?
- Não! Tô esperando uma gatinha. Conheci na
praia.
- Bom pra você. Agora boa noite, tá?
- Sei não...
- O quê é agora?
- A gata... ela sapeca uns troço no cabelo. Deu
pra sacar. Acho que pinta eles.
- E fuma?
- Não!
- Ah! Ah! Quem te pegou agora fui eu! Ela
também não é conforme!
- Tu não saca mesmo nada, tia! Esse conforme
que eu to falando é só das tias!
2005
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