Debaixo
da porta o folheto: “A morte é aquilo
que causa maior medo ao ser humano. Se você está nessa situação, alegre-se
porque há uma saída. Para isso, leia a orientação que vem escrita abaixo”.
Não – penso - não estou nessa
situação, isto é, não tenho medo da morte. Vez por outra a vida me mete
medo, mas a morte (ainda) não. De qualquer modo resolvo proceder à leitura.
Afinal, sabe-se lá, este medo pode se instalar de repente e sempre é bom estar
prevenida.
Leio
com atenção e verifico que não se trata de uma “saída”, mas sim de uma “entrada”.
A “orientação” trata de
como ingressar no Reino dos Céus, desta forma “vencendo” a morte. Mas será que se trata de uma vitória sobre
ela? Parece-me mais uma troca: trocar a vida por um ingresso no Paraíso, mais
que garantido, se seguir à risca a orientação. O folheto é um pequeno manual de
como agir para realizar esta troca. Agnóstica que sou não consigo me
identificar com aquelas palavras. Não que as instruções sejam impossíveis de
ser seguidas ou que ofereçam dificuldades intransponíveis.
Sinto
até uma pontinha de inveja daqueles que, seguindo à risca, adquirem uma certeza
de que serão recompensados com tantas e maravilhosas promessas. Mas cá comigo
as coisas são diferentes. Não vejo como vencer a morte! O que posso fazer é
vencer a vida. Não escrevi errado, não. Não quis dizer na vida. É
a vida mesmo. Por que
esta faz da suas! Tem que se brigar pra viver. E como! Não falo das grandes
catástrofes ou sofrimentos. Estes vêm como um terremoto e não há como vencer. É
deixar o tempo passar – porque passa – e depois cuidar do ferimento inevitável
para que se torne cicatriz. E cicatriz um belo dia pára de doer. Vai ficar lá
pra sempre, lembrando, lembrando... mas a dor, aquela terrível, se dissolve em
lembranças.
Falo
das pequenas lutas. Daquelas de que não são percebidas por outros se saímos
vencedores. A gente nem mesmo faz a contabilização do quanto custou ou custa. E
tome livro de auto-ajuda, Paulo Coelho, o escambáu. Acredito até que façam
efeito para algumas pessoas. Nunca fizeram para mim. Uma pena! Teria talvez
sido legal!
Minha
auto-ajuda me foi legada por meu pai que nunca me disse que se fosse uma boa
menina, depois uma boa mulher, teria reconhecido meus esforços, nada de mal ou
desagradável me aconteceria e eu viveria feliz para sempre. Não é assim. O
andar correto é só um bem estar interno. E põe interno nisto! Não é objeto de
reconhecimento ou elogio de outros nem impede que aconteça o que tem que
acontecer. Ao contrário acontece de tudo e quanto a elogios já ouvi coisas
espantosas como “você tem síndrome de vestal! Todo mundo faz isto!” Ou seja,
fui chamada de boba, ingênua.
Mas
já lá estou eu divagando por outras paragens. Falava era do medo da morte. A
gente sabe que ela vem. Para todos. Por que o medo? Não é alguma coisa que pode
acontecer. É o que vai acontecer. Ter medo da vida é outra praia. Ela teima em acontecer
todos os dias, muito diferente do que planejamos. De certo modo é difícil para
todos. Mais para alguns, é verdade, o que é profundamente injusto. Mas
paradoxalmente a vida é também pra lá de boa. Gostosa de ser vivida se, além de
percebermos as vitórias que conquistamos e que ninguém vê, formos capazes de
nos dar conta de que coisas boas até acontecem. Quem sabe a morte será assim
também?
No
momento em que escrevo a mangueira está agitada pelo vento. Mas não me parece
aflita. Balança de acordo sem que os galhos se quebrem. Ela tem a intuição de
que se for se meter nessa luta inglória contra o vento vai se machucar. Não é
que ceda a qualquer coisa. Não! Tanto que está em pé, sabe-se lá há quantos
anos. Tenho aprendido muito com ela. Afinal, centenária como é, parece bem mais
moça do que eu. E olha que deve ter passado por poucas e boas, permanecendo
viva entre dois prédios, coberta da poluição dos carros, podada sem dó nem
piedade quando alcança um fio ou uma janela e que mais sei eu. E o que é mais espantoso, apesar dos pesares,
reveste-se de novas folhas sempre. São de um verde mais claro que vai escurecendo
à medida que o tempo passa. As coisas boas – as novas folhas – durante algum
tempo são destaque. Depois se incorporam às antigas e eu não consigo mais
identificá-las. A mangueira absorve o novo, o bom. Guarda lá dentro dela. Só
pra ela. Sabida, né? Se vai morrer um
dia? É mais que provável. Bem depois de mim, acredito. Mas não vejo qualquer
preocupação com isto por parte dela. Vive produzindo vida. Nunca vi nela um
movimento autodestrutivo, embora a destruição esteja à sua volta. E oferece
mangas em profusão para delícia dos micos e dos passarinhos que delas se
apoderam antes de mim.
É
isto: a mangueira sabe conviver com a cobiça de seus não iguais. A gente às
vezes dá nó em pingo d’água para conseguir isto. De coração agradeço o folheto.
Sei que a intenção foi boa. Mas não me serve de muito. Nem de pouco. Quero,
sempre quis, vencer a vida. E nisto, no todo dia, a mangueira me ajuda mais.
Quanto à morte, a minha, creio que será mais impactante para quem me gosta do
que para mim. De qualquer modo não é coisa que eu possa treinar ou aprender.
Vai ter que ser de improviso na horinha dela.
2006
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