sexta-feira, setembro 27, 2013

DIREITOS IGUAIS

        Foi lá pelo final dos anos 70. O filho mais moço não pertencia à geração dos mais velhos. Estes – os mais velhos – já haviam tomado seu rumo. Ele – o mais moço – ainda morava com ela. Viviam só os dois naquele apartamento enorme. Á parte pequenos desentendimentos mais que normais entre mãe de quase 50 e filho de quase 20, reinava a paz. Ela trabalhava o dia inteiro e ele estudava idem.
       Naquele tempo ainda não se perdia o sono esperando e rezando para que nada acontecesse quando o filho saía à noite. Daí o sono dos justos enquanto o filho saracoteava nas baladas não intituladas assim naquela época. Ele exercia com uma enorme freqüência e competência o direito de ir e vir. A coisa começou a pegar quando este direito começou a tomar somente o sentido “vir” e vir acompanhado! Complicou a guerra.
     A porta do quarto trancada, o som a uma altura ensurdecedora e ela lá do lado de fora incorporando duas mães: uma moderna, compreensiva, em dia com os usos e costumes que haviam se implantado geral; outra, conservadora, repressora e positivamente furiosa. O esquizofrênico diálogo que as duas travavam era exaustivo. Ser duas mães é pirante. O pior é que não conseguia que uma das duas ganhasse a discussão ou apoiando a conduta do filhote ou exigindo outro comportamento. Assim que a repressora se colocava, irritada, lá vinha a compreensiva alegando: a casa é dele também. Ele cumpre com seu papel. Estuda, é carinhoso, atencioso e blá,blá,blá.  E quando se dava o vice-versa o mínimo que a outra dizia era: uma falta de respeito. A casa é minha. E blá,blá.blá.
    Certo dia, num ato heroico, conseguiu que o som diminuísse. Foi uma vitória, mas não trouxe lá muita alegria. Porque o problema era mesmo a porta trancada. Quer dizer, ela não podia afirmar que fosse trancada. Mas era positivamente fechada. Sempre. A frequentadora do quarto variava e todas eram apresentadas como: “uma amiga, mãe”. O nome raramente era mencionado. Exceção de duas que se manifestaram, sorrindo: Amélia, prazer; Joana, prazer. As outras eram mudas mesmo. O eufemismo “amiga” não conseguia tranquilizá-la.
    Convocou os outros dois filhos, solicitando ajuda. De nada adiantou porque a filha declarou: Relaxa, mãe. É normal nos tempos que correm. Mas me deixa fora disso. Tá? A esta adesão à mãe compreensiva foi contraposta à manifestação do filho mais velho, incentivando a repressora: Ora, mãe, dá um basta! Você não quer é pronto! Se eu for falar, você perde toda autoridade. Mas me deixa fora disto, tá? Elas – as duas mães - serviram um cafezinho aos filhos não solidários e... os deixou fora disto. Fazer o quê?
    Mas a coisa piorou. Piorou muito. Um dia – um sábado – levantou-se alegre, sabe-se lá por que. Estava na cozinha fazendo café e antegozando a leitura do jornal quando um oi, mãe fez com que se voltasse sorrido. E... o mundo caiu! Ao lado do filho, com o rosto bonito marcado pelo travesseiro, sorria uma “amiga”. Os indícios de pernoite eram indiscutíveis. Palavras e ações violentas passaram por sua cabeça, mas ela não executou nenhuma. Ficou muda enquanto o filho, animadíssimo colocava mais pratos e xícaras na mesa da cozinha. Tudo que conseguiu dizer foi: vou tomar banho e trancou-se no banheiro. Dali não sairia até que “aquilo” desaparecesse. Sabe-se lá quanto tempo depois uma batida na porta seguida do grito alegre: Mãe, vou pegar uma praia. Não me espera para almoçar.
    O dia foi pleno de emocionadas discussões: as mães se digladiaram, com argumentos inteligentíssimos, definitivos e apaixonados, até que surgiu não se sabe de onde outra mãe, esclarecida e decidida. As outras se foram e esta se aboletou no sofá, calma, serena e digna à espera do filho para uma conversa séria. E ele chegou alegre, queimado de sol, lindo de morrer e... morto de fome. E lá apareceu a mãe compreensiva: Meu filho! Sem comer até esta hora! A mãe repressiva profundamente irritada resolveu esperar que almoçasse. Não era coisa para ser discutida comendo. Certa solenidade se impunha para respaldar seus irrefutáveis argumentos, construídos e devidamente ensaiados, gesto por gesto, palavra por palavra, durante a espera. Terminado o almoço, foram-se as duas mães originais e a recente se manifestou solene: Precisamos ter uma conversa séria. O “chuta aí, mãe” destoava do tom com que pensava conduzir a fala, mas tudo bem.
    Numa voz pausada e grave desfilou suas razões: a casa, sem dúvida era de ambos. E por isto mesmo ambos tinham direitos e deveres iguais. Havia ficado surpresa ao acordar com uma pessoa estranha na cozinha (pessoa e cozinha haviam sido palavras cuidadosamente escolhidas). Os dois, até aquele dia, tinham conduzido a vida em comum do mesmo modo (o que era uma deslavada mentira). Naquela manhã havia sido evidenciado por ele um comportamento unilateral, o que não era correto nem justo com ela. Ao terminar, e para seu enorme espanto, o filho desolado e contrito responde carinhosíssimo: Puxa, mãe, você está certíssima! Desculpa, desculpa mesmo. Pisei na bola, né? Eu não podia ter feito isto com você. Melhor mãe do mundo.
    Anjos começaram a entoar cânticos maviosos enquanto sinos festivos badalavam e as três mães embevecidas olharam o filho com lágrimas nos olhos até que veio a declaração final: é claro que os direitos são iguais! De hoje em diante você pode trazer quem quiser para dormir aqui. Eu vou ficar meio cabreiro, mas aguento!

2005

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