quinta-feira, setembro 26, 2013

FARAÓS E ABORÍGENES

Conta-nos Platão que quando Hermes (que seria o inventor da escrita) apresentou sua extraordinária invenção ao Faraó Thamus, este se indignou e bradou aos céus: com sua invenção, meu caro, as pessoas não serão mais obrigadas a se valer da memória! Não será um esforço interno que vai fazê-las lembrar-se das coisas e sim um auxílio externo. A memória é uma dádiva e devemos mantê-la viva!
E eis que milênios depois, as palavras de Teócrito Abritta, (em seu delicioso artigo Do Rádio de Galena à Internet publicado no Mombläat), acalmam o pânico do alarmado Faraó: … “felizmente a inteligência e a produção intelectual estão acima de qualquer tecnologia, devendo o homem não se descuidar do desenvolvimento de raciocínios lógicos e intuitivos”... E, sem dúvida, isto é uma verdade, mas não toda a verdade. O felizmente transforma-se em infelizmente quando, conclui Abritta: “existe o perigo de ser gerada no mundo informatizado uma geração de analfabetos, sem raciocínio lógico, sem domínio da escrita e... exímios apertadores de botões!
Já lá vai tempo em que contava eu aos estagiários de análise de sistemas um fato verídico que ilustra as decepções e os perigos causados pelo uso da tecnologia por pessoas despreparadas: pouco depois da Segunda Guerra um grupo de sociólogos deslocou-se para o norte da Austrália para estudar a cultura de uma tribo de aborígenes que beirava a Idade da Pedra. Ficaram intrigados com uma cerimônia que lhes pareceu religiosa e que se repetia sempre num mesmo dia de cada semana, embora este conceito de tempo não fosse ali conhecido.
Um pequeno grupo deslocava-se para uma clareira levando um objeto retangular pouco maior que uma caixa de sapatos e uma enorme vara. Lá chegando depositavam o objeto no chão e fincavam a vara ao lado. Um deles inclinava-se sobre a caixa dizendo frases curtas e entrecortadas por silêncios durante os quais, parecia, tentava escutar algum som como resposta. Os demais, cabeças para o alto, observavam céu como que procurando nele ver alguma coisa que aparentemente lá não se mostrava. Passado algum tempo, e com uma expressão de tristeza e desânimo, desmontavam a geringonça e retornavam à suas moradias.
Levou tempo para que os sociólogos descobrissem o extraordinário significado desta cerimônia: durante a Segunda Guerra um pequeno grupo da área de comunicações da Força Aérea Americana ali montou um posto de avançado de radio para orientar a rota dos aviões DC3, que faziam operações de transporte. A enorme dificuldade de acesso ao local fazia com que fossem abastecidos pelo ar e, semanalmente, comunicavam-se pelo rádio (naquela clareira) orientando o lançamento dos pára-quedas portadores dos víveres, remédios e outros que tais. Estes bens eram, numa política de boa vizinhança, partilhados com os aborígenes que nunca haviam vivido um tempo de tanta fartura. Ao final da guerra se foram os soldados, mas ficou o “conhecimento” do milagre! Era só falar com a caixinha, e esperar olhando para o céu, que boas coisas de lá viriam! Mutatis, mutandis, apertavam o botão...
Vejo hoje com tristeza que o apertar o botão, olhando para o céu, é praticado com muita freqüência e por uma espantosa quantidade de pessoas.  Mas, ao contrário dos aborígenes, não são estas tão ingênuas e têm um poder aquisitivo considerável. E porque existe um “conhecimento” mais abrangente, os praticantes e usuários de tecnologias que não dominam, produzem, e como produzem, um manancial de loucuras, impropriedades e absurdos. 
Os dados não processados por uma real cultura,  disponibilizados “para o mundo”, não se transformam em informação, não  geram qualquer conhecimento. Quem sabe ainda acreditam que é uma verdade o desgraçadamente infeliz nome dado em seus primórdios ao computador: cérebro eletrônico!  A escrita que o Faraó tanto temia inunda a Internet com informações pretensamente científicas e que podem causar muitos danos. Vejo citados, por pessoas ditas preparadas, os mais absurdos conceitos, as mais disparatadas afirmações. E, o que é pior, estas são distribuídas a torto e a direito instando-se para que os endereçados as utilizem e por sua vez, as redistribuam!
Longe de mim negar a importância da Web, do laptop, do celular. São instrumentos maravilhosos... mas são apenas instrumentos e não “engenhocas” fantásticas capazes de pensar ou gerar conhecimento espontaneamente.  
Lembro-me de um episódio em que atestei esta “humanização” do computador. Designada para treinar os empregados da área administrativa do SERPRO em micro informática fui surpreendida pela exclamação indignada de uma excelente secretária que tentava executar um exercício que eu havia preparado para a turma: Anna Maria, faz alguma coisa! “Ele” não quer fazer o que eu estou mandando. O dos outros obedeceram, mas o meu não “quer” fazer. Que me perdoe o Deputado Aldo Rabelo a citação em língua não pátria: Faraós e aborígenes... “plus ça change; plus c’est la même chose”!  

2008

Nenhum comentário:

Postar um comentário