quinta-feira, setembro 05, 2013

UM DAQUELES RAROS DIAS

Era um daqueles raros dias: ao olhar-se no espelho achou-se ótima. O “tailleur” novo - corrige o pensamento, a partir de uma informação das netas – o “terninho” novo está caindo bem demais. Afinal havia encontrado um daqueles sapatos de bico fino que não lhe massacrassem os pés o que a tornavam igual a ... igual a ... ora, a todas. O cabelo, depois de descoberto o xampu que tira o amarelo do branco, e que sempre se descontrolava no vento de Brasília, estava impecável, brilhante. Inacreditável! O contorno dos olhos se fez sem os borrões que sempre a obrigam a passar um lenço, borrando mais ainda e dando a impressão de haver sido socada nos dois olhos. E a mala! Ah! A mala. Era nova, linda!
 Na fila do check-in (da classe executiva e do cartão Smiles ouro) ela era a quarta pessoa e sentia-se executivamente perfeita. Não que fosse muito vaidosa. Até que nem. Mas naquele dia estava mesmo nos trinques e a sensação era pra lá de boa. Pra coroar tudo, a perna não doía (ciática – é uma droga né?). Mas naquele dia não doía nem um pouco mesmo. E ela sorriu de pura felicidade.
 Foi aí que... um funcionário da companhia aproximou-se, solícito: me acompanhe, por favor. Não entendeu bem por que, mas nem perguntou, e seguiu o rapaz num andar que lhe pareceu lépido e fagueiro. Foi conduzida até outro guichê. Ainda lhe passou pela cabeça: por que será que passei na frente dos outros? Estranho. De qualquer modo tudo estava dando tão certo que vai ver iam lhe dar um assento na primeira classe. Um premio por viajar tanto. Já me reconhecem. É isto!
 Estende o cartão Smiles, a carteira de identidade e declara o número do vôo. As palavras da moça vêm com as sílabas destacadas, num tom bem mais alto do que seria necessário. Daquele jeito que se fala com surdos e velhos: a se-nho-ra ne-ce-ssi-ta de al-guém que a a-com-pa-nhe a-té o em-bar-que? Po-de-mos lhe o-fe-re-cer o com-for-to de u-ma ca-dei-ra de ro-das. A voz trêmula de espanto com que consegue responder reforça e justifica  o raio da cadeira: não. Eu posso embarcar sozinha. Ao que a moça entusiasmada declara: Que bom, não é?!  Arrasada ela concorda: É... é bom.
 Uma raiva crescente toma conta de tudo. Furiosa, sobe aquela infernal rampa do aeroporto de Brasília. A mala é muito mais pesada do que a outra e as rodinhas parecem estar emperradas. O sapato começa a massacrar os pés e ela mal consegue pisar, mancando nas duas pernas. A ciática resolve atacar.
 Pensamentos terríveis passam por sua cabeça: da próxima vez que isto acontecer vou querer a cadeira de rodas e tornar a vida do empurrador um inferno. Vou gritar, agarrar a roupa dos passantes, fazer caretas, buzinar e o que mais me vier à cabeça. Pior: vou dizer palavrões. Muitos. Começa a pensar nos que não tem por hábito proferir, e num exercício de análise combinatória, grupa-os dois a dois, três a três. A coisa começa a ficar divertida e... a raiva passa.
 No microfone anunciam o embarque: passageiros com crianças, pessoas com dificuldade de locomoção e idosos. Levanta-se, e mancando assume a dianteira da fila privilegiada. Sorri informando para espanto do funcionário da companhia que destaca os cartões de embarque: me encaixo nas duas últimas categorias! 

2005

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