Era
um daqueles raros dias: ao olhar-se no espelho achou-se ótima. O “tailleur”
novo - corrige o pensamento, a partir de uma informação das netas – o
“terninho” novo está caindo bem demais. Afinal havia encontrado um daqueles
sapatos de bico fino que não lhe massacrassem os pés o que a tornavam igual a
... igual a ... ora, a todas. O cabelo, depois de descoberto o xampu que tira o
amarelo do branco, e que sempre se descontrolava no vento de Brasília, estava
impecável, brilhante. Inacreditável! O contorno dos olhos se fez sem os borrões
que sempre a obrigam a passar um lenço, borrando mais ainda e dando a impressão
de haver sido socada nos dois olhos. E a mala! Ah! A mala. Era nova, linda!
Na fila do check-in (da classe executiva e do
cartão Smiles ouro) ela era a quarta pessoa e sentia-se executivamente
perfeita. Não que fosse muito vaidosa. Até que nem. Mas naquele dia estava
mesmo nos trinques e a sensação era pra lá de boa. Pra coroar tudo, a perna não
doía (ciática – é uma droga né?). Mas naquele dia não doía nem um pouco mesmo.
E ela sorriu de pura felicidade.
Foi aí que... um funcionário da companhia
aproximou-se, solícito: me acompanhe, por favor. Não entendeu bem por que, mas
nem perguntou, e seguiu o rapaz num andar que lhe pareceu lépido e fagueiro.
Foi conduzida até outro guichê. Ainda lhe passou pela cabeça: por que será que
passei na frente dos outros? Estranho. De qualquer modo tudo estava dando tão
certo que vai ver iam lhe dar um assento na primeira classe. Um premio por
viajar tanto. Já me reconhecem. É isto!
Estende o cartão Smiles, a carteira de
identidade e declara o número do vôo. As palavras da moça vêm com as sílabas
destacadas, num tom bem mais alto do que seria necessário. Daquele jeito que se
fala com surdos e velhos: a se-nho-ra ne-ce-ssi-ta de al-guém que a a-com-pa-nhe
a-té o em-bar-que? Po-de-mos lhe o-fe-re-cer o com-for-to de u-ma ca-dei-ra de ro-das.
A voz trêmula de espanto com que consegue responder reforça e justifica o raio da cadeira: não. Eu posso embarcar
sozinha. Ao que a moça entusiasmada declara: Que bom, não é?! Arrasada ela concorda: É... é bom.
Uma raiva crescente toma conta de tudo. Furiosa,
sobe aquela infernal rampa do aeroporto de Brasília. A mala é muito mais pesada
do que a outra e as rodinhas parecem estar emperradas. O sapato começa a
massacrar os pés e ela mal consegue pisar, mancando nas duas pernas. A ciática
resolve atacar.
Pensamentos terríveis passam por sua cabeça:
da próxima vez que isto acontecer vou querer a cadeira de rodas e tornar a vida
do empurrador um inferno. Vou gritar, agarrar a roupa dos passantes, fazer
caretas, buzinar e o que mais me vier à cabeça. Pior: vou dizer palavrões.
Muitos. Começa a pensar nos que não tem por hábito proferir, e num exercício de
análise combinatória, grupa-os dois a dois, três a três. A coisa começa a ficar
divertida e... a raiva passa.
No microfone anunciam o embarque: passageiros
com crianças, pessoas com dificuldade de locomoção e idosos. Levanta-se, e
mancando assume a dianteira da fila privilegiada. Sorri informando para espanto
do funcionário da companhia que destaca os cartões de embarque: me encaixo nas
duas últimas categorias!
2005
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