Ver
um desfile de escolas de samba?!!! Nem morto! Além do espanto que me provocou a
enfática declaração do amigo, fiquei triste. Chegando em casa ainda não havia
atinado o porquê da tristeza. Foi só depois de passar algumas horas escutando
Satie e comendo torradas com “sauce aïoli” num absurdo musical-gastronômico,
que me dei conta.
Ouvi,
pela voz da memória, a voz de meu pai dizendo o que eu deveria ter repassado a
este amigo: experimenta. Se você não
gostar não faz mais. Mas se gostar é mais um prazer que vai ter na vida. Foi primeira
vez que a escutei, mas não seria a última: eu estava olhando com emoção
o enorme cavalo branco de crina e cauda “platinum
blonde”. É um campolino e chama-se Coringa”, disse meu pai, e é seu.
Meu?! Daquele tamanhão todo! Era evidente que esperava meu pai que eu me
dispusesse a montá-lo. Tudo bem, pensei. Papai vai comigo. Até os quatro anos
era assim que eu montava, enganchada frente a um adulto. E vai daí que sorri
encantada dizendo: vamos, papai. Tremi ao me dar conta de que ele não viria.
Ficou evidente que do ponto vista dele minha avançada idade não mais
justificava a dupla montaria! Eu teria que ir sozinha. Recuei, mas tive que
encarar levada pelo sorriso que acompanhou a voz firme: “experimenta...“
E
foi assim que Coringa entrou em minha vida pra ficar. Um companheirão. Amigo de
fé e incondicional até que se foi, bem velho, depois de gozar durante anos uma
aposentadoria mais que merecida pelo muito de prazer que me deu. E pela vida
afora foi um desfilar de desafios Coringa. Primeiro vinha o medo, a insegurança
e depois aos poucos o prazer da coisa nova, diferente, gostosa, instigante. O
“experimenta” passou a ser uma voz interior que me impulsionou e ainda me
impulsiona. Algumas vezes não gosto do resultado e sigo o conselho até o fim:
não faço mais. Mas quando gosto, e isto acontece na maioria dos casos, vou
acumulando novos prazeres.
Detestei
jogar buraco (que me dava sono), mas me apaixonei por bridge e pôquer. Voar de
planador foi um dos maiores prazeres que já tive na vida. Futebol passou a ser
um programão. Detestei caçar onça na Serra da Mantiqueira e dormir no
acampamento no meio da mata com a barraca invadida por lesmas vindas depois de
um temporal. Mas foi nesta mesma mata que me maravilhei com a cadela onceira
que só faltava falar. Achei divertidíssimo participar de um rali Brasília-Goiás
Velho como navegadora e perceber que tinha jeito pra coisa.
Fiquei
em pânico ao ver o Circo Voador lotado e eu tendo que cantar e dizer textos
sobre Noel Rosa, encarando aquela multidão. E, de repente, comecei a achar que
havia nascido praquilo que me valeu um episódio divertido: o gerente de minha
divisão chamou-me para atender uma autoridade do Governo do Rio de Janeiro. No
que entrei o homem me olhou com estranheza e à horas tantas não se conteve e
declarou: tem uma cantora no Circo Voador que é muito parecida com a senhora.
Engoli em seco e informei que já me haviam dito isto. Uma analista de sistemas cantora
poderia ser de confiabilidade duvidosa, quem sabe.
Encarei
num jipe a Belém-Brasilia quando apenas começava a dar passagem. Tremi e depois
relaxei e até gostei de enfrentar uma platéia de fazendeiros enfurecidos e
armados, em Ponte Alta do Norte em Goiás (hoje no Tocantins) que vociferavam
contra o Estatuto da Terra, sobretudo no que tocava ao Cadastramento Rural.
Ensandecidos eles gritavam: isto é comunismo! Sei lá eu como consegui sair
desta entaladela, mas saí, embora tenha certeza de que não os convenci da
inexistência de minha estreita ligação com Moscou.
Consegui
me divertir imensamente quando indígenas Tapirapés que nunca tendo visto uma
mulher branca resolveram conferir - por apalpação!!! - se eu era mesmo uma
mulher enquanto um padre francês me dizia numa voz doce: haja naturalmente. São
como crianças. Foram muitas as experiências e todas válidas mesmo que não
deseje repetir algumas como, por exemplo, comer macaco: juro que nunca mais o
farei.
Foi
tudo isto que me levou ao espanto ao ouvir a declaração do amigo: nunca viu
escolas desfilarem e não gostou! Como é que pode? Como é que alguém pode saber
se não gosta se não fizer? Por que se negar à possibilidade de mais um prazer
na vida? Coisa esquisita esta. Esquisita, mas comum. Quem sabe por isto a
velhice pesa tanto para alguns. Por que inexoravelmente ela vem e quando se instala
não dá mais tempo para experimentar algumas coisas. E aí surge aquele
pensamento cruel e sem saída: ah! Se eu tivesse...
Aproveitar o tempo no tempo é indispensável.
“Time” não é “money” não, é vida! Aqui um parêntese: no que me toca quanto mais
“time” menos “money”. Pode ser até que este meu amigo fosse detestar
assistir ao desfile. Mas ele poderia sair antes de acabar se definitivamente
não gostasse, não poderia? Adquirindo assim o direito de dar uma opinião
lógica: vi e não gostei. Restringir prazeres não é uma coisa sensata. Não é
mesmo. Fizesse eu isto não saberia que tanajura frita tem gosto de amendoim.
Convenho que isto não é de importância vital.
Mas o gosto da tanajura frita somado a mil outros prazeres faz com que
esta tenha sido e continue a ser uma bela, bela vida.
2006
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