Não
sei se era normal ter um professor por confidente. Eu tinha! O velho argentino
David Perez, mais que isto, era meu guru. Poderia ser meu avô e tenho uma vaga ideia de que havia sido professor de meu pai. Naquele tempo guru não estava em
moda. Nem mesmo existia na linguagem comum. Mas ele era um. Com certeza. E, cá
pra nós, ainda é. Raro o dia em não faço ou ajo de acordo com alguma orientação
dele. Nem poderia ser de outro jeito. Por que foi dele que herdei a Gaveta que
ao longo dos anos resolveu, e ainda resolve, problemas que se afiguram
insolúveis.
Tinha
eu uns quinze anos e estava sofrendo como só os adolescentes dos anos quarenta
eram capazes de sofrer. Um sofrimento intenso, definitivo, que seria
companheiro de meus futuros dias e noites, terminando por destruir minha vida.
Tinha certeza de que se chegasse à velhice (em torno de trinta e seis anos,
idade de meu pai) estaria ainda sob a dor que então sentia.
Na
hora do recreio confiei a tragédia ao mestre: sabia eu que meu pai esperava de
mim uma formação universitária e eu... queria ser atriz! Morreria se não fosse.
Mas desapontar meu pai era coisa inimaginável. Tinha eu certeza de que, caso eu
revelasse este meu anseio, ele acabaria por concordar. Num supremo sacrifício
de compreensão paterna que o levaria à morte de desgosto. Um horror: morria eu
ou morria ele!
Lágrimas
corriam em profusão afogando a confidência que era escutada com a maior
seriedade. Foi ai que David Perez me fez uma estranha pergunta: você tem uma
gaveta vazia em seu quarto? Eu não tinha. Ao contrário, todas estavam
entulhadas de roupas, objetos os mais estranhos e revistas que me informavam
aspectos íntimos das estrelas de Hollywood. Desavergonhadamente menti: existia
sim uma gaveta vazia, Disse-me ele então que eu deveria descrever o problema
por escrito e colocar o relato nesta gaveta que a partir deste dia seria
intitulada Cosas que el tiempo arreglara. À medida que novos problemas
fossem ocorrendo seriam objeto do mesmo procedimento. Isto feito eu deveria
parar de pensar neles. E se teimassem em ocupar meus pensamentos eu deveria me
empenhar para substituí-lo por qualquer outro agradável ou bonito. Tyronne
Power, por exemplo. Uma vez por mês deveria abrir a gaveta, reler todas as
anotações. Neste momento veria que alguns dos problemas haviam sido
solucionados como por mágica.
Minha
surpresa foi enorme. Então o velho mestre era dado a simpatias?! Um tanto
insegura, perguntei: isto dá certo? Ele sorriu afirmando: dá... sempre! Nem bem
dito, foi feito. Livrei-me de parte da coleção de fotos de artistas de cinema
da Metro - aquelas que recortava de revistas porque as fotos mesmo eram um
tesouro incalculável do qual não poderia me desfazer. Em lágrimas passei horas
registrando meu doloroso drama.
Coloquei
o escrito na gaveta e procurei não mais pensar nele o que não foi muito difícil
porque eu estava morta de sono e no dia seguinte o Hélcio, menino mais bonito
do colégio, convidou-me para ir ao cinema no sábado! Metro Copacabana + sessão
das quatro + sundae de butterscotch na Americana = namoro na certa e ascensão
aos céus! O namoro com Hélcio teve, entre outras conseqüências, o despertar de um
desvairado interesse por química orgânica. Era ele o melhor aluno desta
matéria. Estar separada de Hélcio por qualquer motivo tornou-se uma tortura.
Tudo era válido para garantir a proximidade. Vai daí que química passou a ser
um must em minha vida. Fizemos
um pacto de fazer o vestibular para Química Industrial. Formados seriamos
convidados pelo Professor Bahiana para trabalhar na Brahma, quando já casados,
logo após a formatura. Juntos para sempre!
Havia
se passado mais de um mês desde a criação da gaveta mágica quando a abri de
novo. Li rindo o papel manchado de lágrimas. Ser atriz! Imagina que doidice,
pensei ao rasgar. Mas não eliminei a gaveta. Havia funcionado e nela passei a
colecionar os problemas que surgiam. Entre eles o fim do namoro com Hélcio,
devidamente registrado e arquivado, em outra torrente de lágrimas. E assim como
havia ocorrido com a esquecida carreira dramática, pouco depois foi lido às
gargalhadas. Eu havia me apaixonado perdidamente por um cadete da Marinha,
irmão de uma colega... e fui correspondida.
Com
o correr dos anos a gaveta tem abrigado problemas realmente sérios cuja solução
parece impossível. Como os da adolescência vão sendo pelo tempo resolvidos, às
vezes bem, às vezes não tão bem. Não rasgo mais os relatos. Sua leitura muito
tem me ensinado. Desbotados pela ação do tempo, olhados do ponto de vista da
velhice, percebo no texto o quanto de dramático ainda me sobrou da
adolescência. A lente de aumento do binóculo que uso para escrevê-los se
inverte quando da releitura do já solucionado. Já não me provocam riso, mas tornam
possível um sorriso. Mas a maior mágica e que mesmo na aflição do momento em
que os relato, tenho a garantia de que um dia serão de alguma forma resolvidos
pela sabedoria mansa e generosa de um grande professor que sabia das coisas.
2006
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