O
título é de um livro de Camilo Castelo Branco, escrito lá pela segunda metade
do século 19. Havia um subtítulo – Historia de uma família. Eu o havia acabado
de ler por imposição da Tia Escritora. O ano era o de 1944 e o mês, janeiro.
Benditas e desejadas férias. E eis que estava para ocorrer comigo uma história
de amor e perdição em pleno século 20! A família chegava em vários carros.
Nesta época já havíamos abandonado o trem. Os outros sitiantes também
aportavam, senão no mesmo dia, com poucos dias de diferença.
Naquele
janeiro quando paramos em Vera Cruz para café e sorvetes encontramos, também
subindo a serra, o General Amaral e seus dois filhos. Meu coração bateu forte
quando Hugo, o mais velho, lindo de morrer e de minha idade, falou baixinho:
amanhã, 10 horas. Na parede do paiol. Quero ver você. A forma telegráfica e a
boca lambuzada de sorvete estavam longe de sugerir um romance, mas o falar
baixinho e o olhar não deixavam dúvidas.
No
ano anterior ele não murmurava. Gritava de longe para que todos escutassem: na
parede do paiol Vou descer às dez! O
descer significava que demandaria nosso sítio pelo morrinho cujo cimo dividia
as duas propriedades. Dali íamos cavalgando até a estação para encontrar a turma. Éramos ambos apaixonados por cavalos. Eu, iniciada na
arte equestre por meu Tio Cavaleiro e ele pelo pai, General de Cavalaria.
Naquela À
noite, em meio à cortina de fumaça dos cigarros da família, não consegui me
ligar na conversa animada depois do jantar. Nem mesmo um dos costumeiros
ataques de fúria do Tio Pediatra prendeu minha atenção: só pensava no “encontro”
do dia seguinte. O murmúrio havia despertado paixão e emoção pela antecipação
do que certamente iria acontecer. Custei a dormir, preocupada: tinha que
acordar cedo para lavar os cabelos e me empenhar na luta inglória de deixá-los
lisos como os de Verônica Lake.
Mal
tomei café. Deixei de lado o pão com manteiga já que naquele dia não podia
engordar nem um grama. Pouco antes das dez corro para a parede do paiol e
começo a ensaiar a pose que seria vista lá de cima por meu cavaleiro andante.
Decidi por me colar em pé ao longo da parede com uma das pernas ligeiramente
flexionada sobre a outra. Ela, a Verônica, havia feito isto num filme. Vesga,
pela impossibilidade de mover o rosto, que deveria ser visto de perfil contra a
parede, o vejo surgir no alto do morro, despencando num
emocionante galope. E eu lá imóvel.
Enlouquecido
por minha imagem ele salta chegando-se a mim. Coloca os dois braços estendidos
com as mãos contra a parede, emoldurando meu rosto. Meu coração dispara: ele
vai me beijar! E ia, sim, mas antes disse: você enlouquece um homem! Deu-se aí
a primeira tragédia! Espantada eu pergunto: que homem?! Felizmente ele
desconsiderou minha infeliz pergunta ou não ouviu. Seu rosto se aproxima
lentamente do meu. Quase desmaiando vejo com horror, por cima de seu ombro, o
sorriso maroto do Tio Cavaleiro que profere um Oh lá! Oh lá! Interjeição usada
para acalmar cavalos nervosos. Dou um grito e toda a cena se desmancha.
Corremos ambos para nossos cavalos e saindo dali, apavorados.
Volto
para casa, imaginando que o mundo iria desabar sobre minha cabeça. Um espanto:
nada acontece. Fazia um calor terrível e depois do almoço, já tranquila e
evitando olhar para o Tio Cavaleiro me acomodo no banquinho da Avó colocando a
cabeça em seu colo. O amor desabrochava e eu estava feliz. Para minha desgraça
começa a desabrochar também a perdição!
Num
tom doce escuto a voz marota do Tio Cavaleiro: acabou meu cigarro. Anna, meu
bem, vá à cidade comprar. Indignada, respondo: era só o que faltava! Eu não...
Estarrecida não acabo a frase ao ver que ele estende os dois braços para frente
na mímica do meu primeiro momento de amor. Minha avó intervém: ora, meu filho,
está um calor terrível. Esta menina acabou de almoçar. Pede um cigarro a um dos
outros. Cínico ele sorri: ela vai, mamãe. Está morta de vontade de dar um
galope neste sol, não é, linda? Humilhada, concordo: é... Deixo a sala revoltada. A caminho das
cocheiras escuto o pandemônio que se estabeleceu pela fúria do Tio Pediatra que
viu no diálogo um bom motivo. A perdição havia vindo pra ficar: virei escrava.
Embora
o namoro tivesse seguido seu curso eu não conseguia me livrar do jugo do tio
que usava e abusava da mímica da cena de amor para me explorar. Nunca escovei
tanto cavalo! Até que o dia em que me insurgi durante o jantar: ele queria
comer a codorna que me cabia! Foi demais! Em desespero me levantei e despejei
um discurso inflamado, emudecendo a família: dane-se. Conta tudo se quiser.
Olha ai todo mundo! Eu estou namorando o Hugo Amaral e ele ia me dar um beijo e
Virgílio viu e ficou ameaçando contar. E vocês todos fiquem sabendo que eu vou
continuar a namorar o Hugo mesmo que me matem. E ele já me deu beijo, sim. Uma
porção. Viu? Viu? Pronto! Para meu espanto, no silêncio, a Avó decreta: Ela
está namorando e não se fala mais nisto. E você, mocinha, não me passe dos
limites. E, sorrindo terna para o filho preferido: Chantagista! O Tio Pediatra murmura entre os dentes:
vergonha! A que ponto chegamos! O Tio Jogador vê a possibilidade de mais um
parceiro: ele joga bridge? A Tia Madrinha me olha com ternura. O Tio Cavaleiro
me faz uma careta malcriada e o Pai apenas sorri piscando o olho para mim. E a
paz inunda meu coração.
2010
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