segunda-feira, setembro 16, 2013

AMOR DE PERDIÇÃO

O título é de um livro de Camilo Castelo Branco, escrito lá pela segunda metade do século 19. Havia um subtítulo – Historia de uma família. Eu o havia acabado de ler por imposição da Tia Escritora. O ano era o de 1944 e o mês, janeiro. Benditas e desejadas férias. E eis que estava para ocorrer comigo uma história de amor e perdição em pleno século 20! A família chegava em vários carros. Nesta época já havíamos abandonado o trem. Os outros sitiantes também aportavam, senão no mesmo dia, com poucos dias de diferença.
Naquele janeiro quando paramos em Vera Cruz para café e sorvetes encontramos, também subindo a serra, o General Amaral e seus dois filhos. Meu coração bateu forte quando Hugo, o mais velho, lindo de morrer e de minha idade, falou baixinho: amanhã, 10 horas. Na parede do paiol. Quero ver você. A forma telegráfica e a boca lambuzada de sorvete estavam longe de sugerir um romance, mas o falar baixinho e o olhar não deixavam dúvidas.
No ano anterior ele não murmurava. Gritava de longe para que todos escutassem: na parede do paiol Vou descer às dez!  O descer significava que demandaria nosso sítio pelo morrinho cujo cimo dividia as duas propriedades. Dali íamos cavalgando até a estação para encontrar a turma. Éramos ambos apaixonados por cavalos. Eu, iniciada na arte equestre por meu Tio Cavaleiro e ele pelo pai, General de Cavalaria. 
Naquela À noite, em meio à cortina de fumaça dos cigarros da família, não consegui me ligar na conversa animada depois do jantar. Nem mesmo um dos costumeiros ataques de fúria do Tio Pediatra prendeu minha atenção: só pensava no “encontro” do dia seguinte. O murmúrio havia despertado paixão e emoção pela antecipação do que certamente iria acontecer. Custei a dormir, preocupada: tinha que acordar cedo para lavar os cabelos e me empenhar na luta inglória de deixá-los lisos como os de Verônica Lake.
Mal tomei café. Deixei de lado o pão com manteiga já que naquele dia não podia engordar nem um grama. Pouco antes das dez corro para a parede do paiol e começo a ensaiar a pose que seria vista lá de cima por meu cavaleiro andante. Decidi por me colar em pé ao longo da parede com uma das pernas ligeiramente flexionada sobre a outra. Ela, a Verônica, havia feito isto num filme. Vesga, pela impossibilidade de mover o rosto, que deveria ser visto de perfil contra a parede, o vejo surgir no alto do morro, despencando num emocionante galope. E eu lá imóvel.
Enlouquecido por minha imagem ele salta chegando-se a mim. Coloca os dois braços estendidos com as mãos contra a parede, emoldurando meu rosto. Meu coração dispara: ele vai me beijar! E ia, sim, mas antes disse: você enlouquece um homem! Deu-se aí a primeira tragédia! Espantada eu pergunto: que homem?! Felizmente ele desconsiderou minha infeliz pergunta ou não ouviu. Seu rosto se aproxima lentamente do meu. Quase desmaiando vejo com horror, por cima de seu ombro, o sorriso maroto do Tio Cavaleiro que profere um Oh lá! Oh lá! Interjeição usada para acalmar cavalos nervosos. Dou um grito e toda a cena se desmancha. Corremos ambos para nossos cavalos e saindo dali, apavorados.
Volto para casa, imaginando que o mundo iria desabar sobre minha cabeça. Um espanto: nada acontece. Fazia um calor terrível e depois do almoço, já tranquila e evitando olhar para o Tio Cavaleiro me acomodo no banquinho da Avó colocando a cabeça em seu colo. O amor desabrochava e eu estava feliz. Para minha desgraça começa a desabrochar também a perdição! 
Num tom doce escuto a voz marota do Tio Cavaleiro: acabou meu cigarro. Anna, meu bem, vá à cidade comprar. Indignada, respondo: era só o que faltava! Eu não... Estarrecida não acabo a frase ao ver que ele estende os dois braços para frente na mímica do meu primeiro momento de amor. Minha avó intervém: ora, meu filho, está um calor terrível. Esta menina acabou de almoçar. Pede um cigarro a um dos outros. Cínico ele sorri: ela vai, mamãe. Está morta de vontade de dar um galope neste sol, não é, linda? Humilhada, concordo: é...  Deixo a sala revoltada. A caminho das cocheiras escuto o pandemônio que se estabeleceu pela fúria do Tio Pediatra que viu no diálogo um bom motivo. A perdição havia vindo pra ficar: virei escrava.
Embora o namoro tivesse seguido seu curso eu não conseguia me livrar do jugo do tio que usava e abusava da mímica da cena de amor para me explorar. Nunca escovei tanto cavalo! Até que o dia em que me insurgi durante o jantar: ele queria comer a codorna que me cabia! Foi demais! Em desespero me levantei e despejei um discurso inflamado, emudecendo a família: dane-se. Conta tudo se quiser. Olha ai todo mundo! Eu estou namorando o Hugo Amaral e ele ia me dar um beijo e Virgílio viu e ficou ameaçando contar. E vocês todos fiquem sabendo que eu vou continuar a namorar o Hugo mesmo que me matem. E ele já me deu beijo, sim. Uma porção. Viu? Viu? Pronto! Para meu espanto, no silêncio, a Avó decreta: Ela está namorando e não se fala mais nisto. E você, mocinha, não me passe dos limites. E, sorrindo terna para o filho preferido: Chantagista!  O Tio Pediatra murmura entre os dentes: vergonha! A que ponto chegamos! O Tio Jogador vê a possibilidade de mais um parceiro: ele joga bridge? A Tia Madrinha me olha com ternura. O Tio Cavaleiro me faz uma careta malcriada e o Pai apenas sorri piscando o olho para mim. E a paz inunda meu coração. 

2010

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