quarta-feira, setembro 04, 2013

A EXTRAORDINÁRIA PÍRULETA

Uma arrumação de armários me valeu a recuperação de um velho caderninho de anotações de já lá vão mais de 40 anos. Naqueles idos de 1972 um cineasta amigo convidou-me para escrever a quatro mãos um roteiro de um curta sobre a saga de um casarão antigo de Botafogo prestes a ser demolido. Partimos então em busca da autorização dos herdeiros e para uma série de entrevistas que visavam garimpar a história escondida por trás daquelas imponentes paredes.
Foram muitos os relatos, emocionados, fantasiosos, engraçados e instigantes todos fornecendo um rico material para a elaboração do roteiro já que meio garantido pelas imagens que poderiam resultar do imponente prédio. Mas nenhum pode se rivalizar ao extraordinário diálogo que anotei, fruto de uma duvidosa iniciação sexual e, provavelmente motivado pelo empenho de uma jovem mãe em esclarecer os fatos da vida a sua curiosa filha aliado à uma censura interna impossível de ser superada.
Uma das bisnetas do primeiro morador do casarão - um Conde - gentilmente aceitou nos receber em sua casa para relatar as lembranças de sua infância nos belos jardins da mansão. Na hora aprazada comparecemos à sua casa e fomos recebidos por uma empregada que em nome da patroa apresentou sentidas desculpas: ela estava atrasada e nos pedia que esperássemos saboreando um delicioso bolo com um idem café. 
Acomodamo-nos na sala onde duas meninas de seus cinco a seis anos brincavam com uma profusão de bonecas.  Segundo nos informou a moça que nos recebeu, uma filha da bisneta e outra uma de suas primas. Entre elas entabularam o delicioso diálogo furiosamente anotado por mim no caderninho destinado às memórias do casarão e que encontro agora amarelecido pelo tempo, mas provocando ainda o mesmo delicioso espanto que nos acometeu na época:

-      Eu acho que a Rosana quer ter um neném. (Rosana era uma das bonecas)
-      Você sabe como é que é faz pra ter neném?
-      Não sei não!
-      Eu sei. Mamãe me contou que eu perguntei quando chegou o Pituca.
-      Diz como é que faz e ai a gente faz com a Rosana.
-      É assim: o papai e a mamãe tão no quarto na hora de dormir papai apaga a luz.
-      Mamãe não pode apagar?
-      Não sei. Mamãe não falou. Aí fica escuro. E aí porque tá muito escuro dá uma vontade muuuito grande de ter um neném (!!!)
-      Dá vontade no papai ou na mamãe?
-      Mamãe não falou. Aí o papai pega umas “piruletas” que ele guardou nele e bota na mamãe.
-      Bota onde?
-      Mamãe não falou.
-      E aí?
-      E aí a “piruleta” vai andando, andando na barriga da mamãe até que acha uma coisa parecida com um ovo que está lá guardado nela e tem uma porção de ovo guardado nela e então a “piruleta” escolhe um ovo e entra dentro dele e começa a fazer um neném bem “devagarinho”.
-      Como é que a “piruleta” entra dentro do ovo? 
-      Mamãe não falou. A “piruleta” é que faz o neném no ovo que vai virando um neném.
-      Como é que vai virando neném?
-      Mamãe falou que é igual semente vira “sambambaia”. E tem também que quando estava escuro que a luz apagou o papai não sabia se pegou a “piruleta” azul ou a “piruleta” cor-de-rosa porque estava escuro. Se for cor-de-rosa a “piruleta” vai fazer uma menina e se for azul a “piruleta” vai fazer um menino. Então ninguém sabe se vai fazer um menino ou uma menina.
-      Só a “piruleta” que sabe, né?
-      É.  
-      Tá bom. A gente faz uma “piruleta” de mentirinha e bota na Rosana. 
-      Bota onde?
-      Ué! Na boca e a gente bota no escuro assim que ela ficar com muita vontade de ter um neném.
-      Quem é que vai ser o papai? Você ou eu?
-      Eu quero e apago a luz. Mas tem que fingir que tem um ovo na barriga da Rosana, tá bem?
-      Você falou que tem que ser uma porção de ovo pra “piruleta” escolher.  
-      É. Tem que ter uma porção. Eu queria que antes de apagar a luz ver a cor da “piruleta”. É melhor uma menina, né? Eu acho que a Rosana quer uma menina. 
-      Ta bom. Vamos lá ao meu quarto que a gente fica no escuro.
A transcrição termina neste ponto para minha tristeza. Adoraria ter presenciado a consumação do ato que espero tenha resultado numa bela menina-boneca.

2007

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