segunda-feira, setembro 02, 2013

ENTULHO

Desavergonhadamente escuto a conversa alheia. O restaurante, quase vazio facilitava e ainda por cima elas vieram sentar-se na mesa ao lado. Vítimas do fenômeno inexplicável que ocorre, sobretudo, em cinemas vazios: vem alguém e senta-se a seu lado! Mas não importa isto. O fato é que estavam me proporcionando um delicioso jantar que havia se anunciado sem graça.
Ao entrar no restaurante do hotel, me decepcionei ao vê-lo tão vazio. Uma das atividades que mais curto nestas viagens a trabalho é a cata de personagens. Restaurante de hotel é certamente um criadouro destes. Mas aquele não estava prometendo, até que entraram “as três”. Com certezas freqüentadoras da fila dos idosos, redondas, metidas em uma estamparia florida, falam. Falam muito: vocês lembram daquele garçom engraçado do hotel de Guarapari? Entusiasmadas passam do garçom de Guarapari para o guia da Bahia; do banhista de Rio das Ostras para o gerente do Hotel Fazenda, sabe-se lá onde. E vem memória! Agora estão em Fortaleza. A noite está linda. O luar e a brisa do mar entram pelas janelas.  Mas elas, perdidas em paragens outras, não estão se dando conta.
Nos relatos uma ponta de tristeza: que pena que não estamos mais lá. Que saudade daquelas férias. Como foi divertido. E em nenhum momento comentam o que quer que seja sobre as férias que estão vivendo. Espantoso! O presente não está existindo! As lembranças são mais reais do que a lua do Ceará. Provavelmente no momento em que ocorreram as lembranças divertidas do passado também não perceberam. E as férias que estão acontecendo naquele momento só serão verdade muito depois de terminadas. O “você lembra quando” impede a visão do agora. O presente está soterrado pelo entulho do passado.
Palavra feia esta: entulho. Sou uma apaixonada por palavras. Por dever de ofício deveria sê-lo por números, significando percentuais, indicadores, probabilidades... Mas estes não me comovem, não. Eles - os números - são meus instrumentos de trabalho e comovem tanto quanto um serrote ao carpinteiro. Acredito que ele – o carpinteiro – curta mais o som do serrote quando fere a madeira, o cheiro da serragem que se desprende, o sonho do objeto que dali resultará ou mesmo o dinheiro do trabalho que lhe valerá o sustento.
Mas deixa isto pra lá. Como sempre acontece, a partir de uma palavra estou perdendo o rumo. A associação entulho–passado é perigosa, mas escapuliu. Se algum psicanalista escuta meu pensamento estarei em maus lençóis. É sempre perigoso deixar escapulir coisas que poderão servir para explicar meus comportamentos esdrúxulos, no presente. Continuo a divagação: ao chegar à terceira idade... Não gosto nada deste termo: prefiro velhice mesmo. Acho bonito. Enquanto a Cartilha do Politicamente correto não proibir o termo vou de velha mesmo.
Mas vamos lá: ao chegar à velhice, ou nas proximidades dela, algumas pessoas agarram-se ao passado-entulho. Movem-se em meio a coisas inúteis, quebradas, estragadas, pulando sobre escombros, ruínas, esbarrando em cacos, detritos e o que é terrível, sofrem com isto. Conservam em casa objetos que não lhes servem de nada e que lhes fazem lembrar, diariamente, alguma situação ou alguém que, mais das vezes, não lhes faziam nada bem. Isto porque quando a lembrança é boa, boa mesmo, não há necessidade de objetos para trazê-la.
O mais estranho é que estas mesmas pessoas sabem, praticam e conhecem o antídoto que as libertaria deste mal. Quando fazem uma obra em casa contratam um caminhão para tirar o entulho; quando a máquina de lavar quebra e é substituída por uma nova não lhes ocorre estocar a velha com destaque num lugar da casa, para diariamente a ela dirigir o olhar ou mesmo para tentar em vão utilizá-la. Sabem que coisas sem serventia são coisas sem serventia. Mas o entulho do passado, não! Este é carregado com todo peso e não serventia que tem; conservado através de lembranças e citações; exibido aos outros, como um troféu, para apresentação da vítima que foram. Não importa que a maior parte das desventuras tenha sido causada por opções próprias. E quem não as fez? E aí está o perigo. Quando não se toma uma providência para mudar o rumo, as opções erradas tendem a se repetir, e repetir e repetir gerando mais e mais entulho. É espantosa a capacidade reprodutiva deste!  Conservá-lo é impedir que o espaço seja ocupado pelo que quer que seja. Não cabe mais nada.
O problema é que o caminhão que retira o entulho não vem a um simples chamado. É preciso fazê-lo existir. Pra que aumentar o buraco? Vai ficar cada vez mais fundo e não se vai poder sair. Claro que existem coisas boas no passado. Sempre. E destas é bom lembrar e guardar lá num lugar em que se possa retirá-las no momento, quando necessário, para se ter a sensação de que outras acontecerão. Mas sobretudo servem para construir o presente. Vai daí que, mesmo destas, não se deve lembrar sem parar. Não é legal. Ficar lembrando, impede de sentir, cheirar, ouvir, ver e viver o que está acontecendo agora. E o presente pode ser como o meu agora curtindo a visão dos micos na mangueira. Eles – os micos - vão me valer, quem sabe, o escrito de uma nova crônica. É uma maneira esdrúxula de acabar esta. Mas isto é vida!

2005

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