Desavergonhadamente
escuto a conversa alheia. O restaurante, quase vazio facilitava e ainda por
cima elas vieram sentar-se na mesa ao lado. Vítimas do fenômeno inexplicável
que ocorre, sobretudo, em cinemas vazios: vem alguém e senta-se a seu lado! Mas
não importa isto. O fato é que estavam me proporcionando um delicioso jantar
que havia se anunciado sem graça.
Ao
entrar no restaurante do hotel, me decepcionei ao vê-lo tão vazio. Uma das
atividades que mais curto nestas viagens a trabalho é a cata de personagens. Restaurante
de hotel é certamente um criadouro destes. Mas aquele não estava prometendo,
até que entraram “as três”. Com certezas freqüentadoras da fila dos idosos,
redondas, metidas em uma estamparia florida, falam. Falam muito: vocês lembram daquele garçom engraçado do
hotel de Guarapari? Entusiasmadas passam do garçom de Guarapari para o guia
da Bahia; do banhista de Rio das Ostras para o gerente do Hotel Fazenda,
sabe-se lá onde. E vem memória! Agora estão em Fortaleza. A noite está linda. O
luar e a brisa do mar entram pelas janelas.
Mas elas, perdidas em paragens outras, não estão se dando conta.
Nos
relatos uma ponta de tristeza: que pena que não estamos mais lá. Que saudade
daquelas férias. Como foi divertido. E em nenhum momento comentam o que quer
que seja sobre as férias que estão vivendo. Espantoso! O presente não está
existindo! As lembranças são mais reais do que a lua do Ceará. Provavelmente no
momento em que ocorreram as lembranças divertidas do passado também não
perceberam. E as férias que estão acontecendo naquele momento só serão verdade
muito depois de terminadas. O “você lembra quando” impede a visão do agora. O
presente está soterrado pelo entulho do passado.
Palavra
feia esta: entulho. Sou uma apaixonada por palavras. Por dever de ofício
deveria sê-lo por números, significando percentuais, indicadores,
probabilidades... Mas estes não me comovem, não. Eles - os números - são meus
instrumentos de trabalho e comovem tanto quanto um serrote ao carpinteiro.
Acredito que ele – o carpinteiro – curta mais o som do serrote quando fere a
madeira, o cheiro da serragem que se desprende, o sonho do objeto que dali
resultará ou mesmo o dinheiro do trabalho que lhe valerá o sustento.
Mas
deixa isto pra lá. Como sempre acontece, a partir de uma palavra estou perdendo
o rumo. A associação entulho–passado é perigosa, mas escapuliu. Se algum
psicanalista escuta meu pensamento estarei em maus lençóis. É sempre perigoso
deixar escapulir coisas que poderão servir para explicar meus comportamentos
esdrúxulos, no presente. Continuo a divagação: ao chegar à terceira idade...
Não gosto nada deste termo: prefiro velhice mesmo. Acho bonito. Enquanto a
Cartilha do Politicamente correto não proibir o termo vou de velha mesmo.
Mas
vamos lá: ao chegar à velhice, ou nas proximidades dela, algumas pessoas
agarram-se ao passado-entulho. Movem-se em meio a coisas inúteis, quebradas,
estragadas, pulando sobre escombros, ruínas, esbarrando em cacos, detritos e o
que é terrível, sofrem com isto. Conservam em casa objetos que não lhes servem
de nada e que lhes fazem lembrar, diariamente, alguma situação ou alguém que,
mais das vezes, não lhes faziam nada bem. Isto porque quando a lembrança é boa,
boa mesmo, não há necessidade de objetos para trazê-la.
O
mais estranho é que estas mesmas pessoas sabem, praticam e conhecem o antídoto
que as libertaria deste mal. Quando fazem uma obra em casa contratam um
caminhão para tirar o entulho; quando a máquina de lavar quebra e é substituída
por uma nova não lhes ocorre estocar a velha com destaque num lugar da casa,
para diariamente a ela dirigir o olhar ou mesmo para tentar em vão utilizá-la.
Sabem que coisas sem serventia são coisas sem serventia. Mas o entulho do
passado, não! Este é carregado com todo peso e não serventia que tem; conservado
através de lembranças e citações; exibido aos outros, como um troféu, para
apresentação da vítima que foram. Não importa que a maior parte das desventuras
tenha sido causada por opções próprias. E quem não as fez? E aí está o perigo.
Quando não se toma uma providência para mudar o rumo, as opções erradas tendem
a se repetir, e repetir e repetir gerando mais e mais entulho. É espantosa a
capacidade reprodutiva deste!
Conservá-lo é impedir que o espaço seja ocupado pelo que quer que seja.
Não cabe mais nada.
O
problema é que o caminhão que retira o entulho não vem a um simples chamado. É
preciso fazê-lo existir. Pra que aumentar o buraco? Vai ficar cada vez mais
fundo e não se vai poder sair. Claro que existem coisas boas no passado.
Sempre. E destas é bom lembrar e guardar lá num lugar em que se possa
retirá-las no momento, quando necessário, para se ter a sensação de que outras
acontecerão. Mas sobretudo servem para construir o presente. Vai daí que, mesmo
destas, não se deve lembrar sem parar. Não é legal. Ficar lembrando, impede de
sentir, cheirar, ouvir, ver e viver o que está acontecendo agora. E o presente
pode ser como o meu agora curtindo a visão dos micos na mangueira. Eles – os
micos - vão me valer, quem sabe, o escrito de uma nova crônica. É uma maneira
esdrúxula de acabar esta. Mas isto é vida!
2005
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