Sempre ouvi dizer
que na velhice vive-se de memórias. Embora eu não “viva” delas lá vem um dia
que ela - a memória - faz das suas. Será uma choramingação geriátrica? Não importa. Hoje dela. A esta altura, pelo título, vocês podem
estar imaginando que vou brindá-los com um relato escabroso deixado escapar
pela idade em que a censura nos abandona. Não é bem isto mas a memória de um prostíbulo é bem viva em mim.
Não! Eu não o frequentava! Morava em frente a um.
Aconteceu assim:
tendo meu marido sido transferido para Recife para lá me mandei pioneira, para
providenciar moradia. Eu procurava uma
casa perto da praia e da Base Aérea. Para meu espanto encontrei uma maravilhosa
(tinha até um lago com repuxo), numa rua de terra, perpendicular à Praia de
Boa Viagem. O valor do aluguel era inacreditável de tão barato. Escarafunchei
tudo para descobrir um defeito. Nenhum! O lugar era um tanto deserto o que era
ótimo pelo silêncio. Em frente uma enorme casa que me pareceu inabitada.
Aluguei na hora e me mandei de volta para providenciar a mudança e trazer as
crianças.
No dia em que a
mudança chegou a casa em frente ainda parecia deserta. Isto é, até as seis
horas da tarde quando se abriram as janelas e um movimento de carros intenso
começou. Era um prostíbulo! Explicava-se o valor do aluguel. Resignei-me:
certamente não me incomodaria, nem eu a este.
Poucos dias depois
da mudança, as crianças já no colégio, ouço palmas no portão. Duas “meninas” da
casa, aflitas, perguntavam se eu tinha telefone. Uma das moradoras havia
despencado de uma escada ao mudar a lâmpada de um lustre que também despencou.
Estava toda cortada por pedaços de vidro, esvaindo-se em sangue. Telefone eu
não tinha. Mas tinha carro. Vai daí que me ofereci para levar a infeliz
acidentada ao Hospital da Aeronáutica. Elas, constrangidas, acharam que por lá
não seriam atendidas. Escandalizei-me: como não seriam atendidas? Eu garantia
(coisa que não poderia fazer, claro). Os olhares dos médicos e enfermeiros
denotaram espanto e horror. Mas – creio – a fama de protagonista de eventos
esquisitos havia precedido minha chegada a Recife e minha enfática cobrança de
atendimento fez efeito.
Devidamente
costurada e medicada a “menina”, retornamos. Recebi agradecimentos em profusão e
dei por encerrado o episódio. Pensava eu! Dois dias depois novas palmas. Agora
quatro “meninas” estavam no portão, sorridentes, portando uma panela com uma
galinha de cabidela (galinha ao molho pardo). Era meu pagamento pelos bons
serviços prestados. Convidei para entrar. Fazer o quê? Elas, que sabiam das
coisas, inicialmente recusaram o convite. Minha insistência venceu e o
cafezinho de lei foi servido em meio a uma conversa animada na qual se
informaram de minha vida.
Os relatos de suas
vidas vieram aos poucos, bem depois. Sim, porque passaram a freqüentar minha
sala durante a tarde. Histórias tristes, engraçadas, comoventes, me foram
contadas numa sinceridade e numa abertura espantosas. Não exagero ao dizer que
ficamos amigas e que eu sentia falta quando não apareciam. Delicadas, tinham o
cuidado de jamais me convidar para ir “lá” (designação que usavam para o
prostíbulo) e de nunca aparecerem quando meus filhos estavam em casa. Mas
perguntavam muito por eles. Pediam para ver fotos, queriam saber o que como
eram, o que faziam e estranhamente pediram para ver seus quartos e brinquedos.
Uma delas
presenteou minha filha com uma família de bonecas de pano. E recomendou séria: diz
pra ela que foi uma tia que ela não conhece que deu. Mas fala assim mesmo: tia.
Não esquece! Obedeci. Minha filha nunca conheceu esta tia tão carinhosa.
Pena! Chamava-se Iolanda, a tia. Não era o nome verdadeiro: um dia distraiu-se
ao me contar um episódio em que a mãe ao falar a chamava de Severina. Fingi que
não percebi. Iolanda é mais bonito, né?
Lembro-me da
emoção que foi o sumiço da Das Graças. Assim da noite para o dia. A Madame
ficou fula porque ela estava devendo. Como o seu mais fiel freguês também sumiu
todas concordaram que ele havia tirado Das Graças da vida, mandando-se os dois
para bem longe. É que se vai ter vida junto, pode ficar aqui não, disseram
elas. Tudo que é gente ia lembrar que é uma decaída. As pessoas são tudo
ruim, sabe? Eu sabia, sim. Os comentários que ouvia de algumas senhoras de
oficial sobre minhas “amizades” assim denunciava. Mas garanto que nenhuma delas
seria capaz do exemplo de delicadeza e bom gosto que me deram as “meninas”.
Convidei-as para
um lanche quando soubemos de nova transferência para Salvador. Ia sentir falta
delas. Foi então que a morena Jurema fez um pequeno discurso de despedida que
quase me levou às lágrimas. Comovida, sob o sorriso de concordância das outras
ela falou: nós queria dizer o que tu é pra nós. Então a gente reuniu e
pensou o que ia fazer tu ficar alegre e feliz. E nós todas estamos falando aqui uma
verdade jurada que seu marido nunca foi “Lá”. Verdade ou não, que belo presente!
Talvez o mais bonito e o mais delicado que já ganhei.
2011
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