terça-feira, setembro 24, 2013

HISTÓRIAS DE FAMÍLIA SÃO SEMPRE VERDADEIRAS

Não sei onde escutei ou li esta afirmação. O fato é que me volta de tempos em tempos. Sobretudo quando escrevo sobre minha família e sobre meu Pai, origem da maior herança que recebi. Papai deixou-me um tesouro aumentado em valor e importância por pessoas especiais brotadas nos galhos da árvore materna: tios, primos, mãe, avó e até o avô, que nem conheci. Deste, repetida pela Avó, até escuto a voz!   
Hoje, sabe-se lá por que passei a manhã relendo meus escritos. Onde fui encontrar tanto assunto? E nesta releitura uma descoberta: os autores verdadeiros são meu Pai e os outros. Encarapitados em meu ombro ditam tudo! Até quando falam de coisas que não viveram. Como poderiam vive-las? Já se foram todos, faz tempo. Mesmo assim conversam comigo explicando o inexplicável, rindo de minhas dúvidas, escandalizando-se ou rindo quando meto os pés pelas mãos, ensinando sem didática os mais diversos truques. Sempre o fizeram mesmo sabendo que a vida para mim não seria apenas um adestrar potros, jogar bridge, xadrez e pôquer, tirar tatu da toca, fazer goiabada cascão em tacho de cobre, criar cobra jiboia na trave do telhado do paiol, castrar coelhos, curar cólica de cavalos, ler Proust e Anatole France, amar matemática e exercer uma infinidade de outras atividades tão díspares quanto estas.
Hoje percebo que esta salada maluca era intencional. Visava me fazer curiosa diante da vida para que esta se tornasse uma aventura. E foi assim que prazeres surgiram e ainda surgem. Mas, a maravilha maior é que, ainda hoje, me dão colo e, se estou sofrendo, vêm mansas as palavras mágicas: vai passar, minha nega. E um colo aos mais de oitenta anos é a glória, não é?
Entre a frase anterior e esta que se inicia se passaram muitas horas. Fui tomada de uma urgência irresistível: conversar com meu primo que mora em Miguel Pereira, num lindo sítio. Zezé, que nunca foi José Paulo para mim, tem minha idade. Meses mais velho era um companheirão.
Mil aventuras vivemos juntos. Lembro-me do dia em que fomos expulsos do circo mambembe que havia aportado em Miguel Pereira. Pedimos bis várias vezes exigindo o retorno de um balé grotesco executado pela trapezista e a mulher gorda. Ao perceberem que era uma gozação, nos puseram para fora aos gritos, frente a toda platéia que nos vaiou. Na noite escura, de volta para casa, cavalos emparelhados e ao passo, nos censuramos rindo: foi mal! Naquele tempo não se usava esta expressão. Mas o sentido do nosso acesso de riso era exatamente este: conscientes do erro, não arrependidos mas profundamente divertidos. 
Hoje conversei horas com ele. Espantoso! As mesmas palavras e os mesmos códigos de mais de sessenta anos atrás. O “lembra?” pontuou palavras de lá e de cá entremeadas de informações e comentários do “hoje”, também de lá e de cá, dando a sensação de que não havia a distância criada por tantos anos passados. Vai ver esta não existe mesmo. Memória tem lá parâmetro, gente? É como o pó de pirlimpimpim da Emília: pula-se de lá para cá em segundos. Dou-me conta de que preciso ir vê-lo. Abraçar gostoso e conversar na varanda junto a todos que se foram. Por que onde estivermos eles estarão provocando risos e sorrisos.
Eu deveria - se não fosse agnóstica - agradecer diariamente a Deus por esta santa família que me desvendou, muito antes de Nelson Rodrigues, a vida como ela é. Dizem (sei lá eu quem “dizem”) que angustias do passado impedem que se viva sem angustia no presente. E não é que eles me salvaram deste horror com uma terapia preventiva? Maluca, mas muito eficaz. Quando morreram já me haviam dado alta. Não pintaram a vida cor-de-rosa, não! Longe disto. Mas jamais criaram angustia. Criavam, sim, a consciência de que mesmo quando fosse difícil não seria o fim do mundo.
Lembro-me de meu pai dizendo que livre arbítrio só existia no momento em que se tomava uma decisão ou um caminho. A partir da decisão que eu tomasse estaria irremediavelmente condenada a tudo de bom e de ruim que estaria nela embutido. E alertou: fica de olho. Bom e o mau sempre fazem parte das conseqüências de qualquer decisão! Sei lá como conseguiu deixar isto claro sem causar a tal angustia impeditiva de um futuro livre dela. Talvez por que desde que nasci me havia feito presente de armas e instrumentos (que foram mudando a cada idade) para que eu pudesse enfrentar os “ruins” sem que isto impedisse usufruir os “bons”. Neste mesmo sentido (nem sempre tão explícitos, mas na prática) também se empenharam os outros.

E foi assim que aportei nos oitenta, nas crônicas, na bisavó, na vida profissional, nos filhos, nas netas e nas histórias de família tão verdadeiras. O bom e o ruim aconteceram – e como! – mas fui dando conta. Nem sempre da melhor maneira ou com total competência. Longe disso! Mas o bastante para impedir amargura, culpa, frustração e desânimo. Que gente legal aquela. Anjos da guarda que me fizeram entender, muito depois de terem partido, o sentido do que me disse um muito querido amigo, Alcione Araujo: implacável o tempo não para; mas, cá pra nós, a vida é ruim, mas é muito boa! 

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