Não
sei onde escutei ou li esta afirmação. O fato é que me volta de tempos em
tempos. Sobretudo quando escrevo sobre minha família e sobre meu Pai, origem da
maior herança que recebi. Papai deixou-me um tesouro aumentado em valor e
importância por pessoas especiais brotadas nos galhos da árvore materna: tios,
primos, mãe, avó e até o avô, que nem conheci. Deste, repetida pela Avó, até escuto
a voz!
Hoje,
sabe-se lá por que passei a manhã relendo meus escritos. Onde fui encontrar
tanto assunto? E nesta releitura uma descoberta: os autores verdadeiros são meu
Pai e os outros. Encarapitados em meu ombro ditam tudo! Até quando falam
de coisas que não viveram. Como poderiam vive-las? Já se foram todos, faz
tempo. Mesmo assim conversam comigo explicando o inexplicável, rindo de minhas
dúvidas, escandalizando-se ou rindo quando meto os pés pelas mãos, ensinando sem
didática os mais diversos truques. Sempre o fizeram mesmo sabendo que a vida
para mim não seria apenas um adestrar potros, jogar bridge, xadrez e pôquer,
tirar tatu da toca, fazer goiabada cascão em tacho de cobre, criar cobra jiboia
na trave do telhado do paiol, castrar coelhos, curar cólica de cavalos, ler
Proust e Anatole France, amar matemática e exercer uma infinidade de outras
atividades tão díspares quanto estas.
Hoje
percebo que esta salada maluca era intencional. Visava me fazer curiosa diante
da vida para que esta se tornasse uma aventura. E foi assim que prazeres
surgiram e ainda surgem. Mas, a maravilha maior é que, ainda hoje, me dão colo
e, se estou sofrendo, vêm mansas as palavras mágicas: vai passar, minha nega. E um colo aos mais de oitenta anos é a glória, não
é?
Entre
a frase anterior e esta que se inicia se passaram muitas horas. Fui tomada de
uma urgência irresistível: conversar com meu primo que mora em Miguel Pereira,
num lindo sítio. Zezé, que nunca foi José Paulo para mim, tem minha idade.
Meses mais velho era um companheirão.
Mil
aventuras vivemos juntos. Lembro-me do dia em que fomos expulsos do circo
mambembe que havia aportado em Miguel Pereira. Pedimos bis várias vezes
exigindo o retorno de um balé grotesco executado pela trapezista e a mulher
gorda. Ao perceberem que era uma gozação, nos puseram para fora aos gritos, frente
a toda platéia que nos vaiou. Na noite escura, de volta para casa, cavalos
emparelhados e ao passo, nos censuramos rindo: foi mal! Naquele tempo não se
usava esta expressão. Mas o sentido do nosso acesso de riso era exatamente
este: conscientes do erro, não arrependidos mas profundamente divertidos.
Hoje
conversei horas com ele. Espantoso! As mesmas palavras e os mesmos códigos de
mais de sessenta anos atrás. O “lembra?” pontuou palavras de lá e de cá
entremeadas de informações e comentários do “hoje”, também de lá e de cá, dando
a sensação de que não havia a distância criada por tantos anos passados. Vai
ver esta não existe mesmo. Memória tem lá parâmetro, gente? É como o pó de
pirlimpimpim da Emília: pula-se de lá para cá em segundos. Dou-me conta de que
preciso ir vê-lo. Abraçar gostoso e conversar na varanda junto a todos que se
foram. Por que onde estivermos eles estarão provocando risos e sorrisos.
Eu
deveria - se não fosse agnóstica - agradecer diariamente a Deus por esta santa
família que me desvendou, muito antes de Nelson Rodrigues, a vida como ela é.
Dizem (sei lá eu quem “dizem”) que angustias do passado impedem que se viva sem
angustia no presente. E não é que eles me salvaram deste horror com uma terapia
preventiva? Maluca, mas muito eficaz. Quando morreram já me haviam dado alta.
Não pintaram a vida cor-de-rosa, não! Longe disto. Mas jamais criaram angustia.
Criavam, sim, a consciência de que mesmo quando fosse difícil não seria o fim
do mundo.
Lembro-me
de meu pai dizendo que livre arbítrio só existia no momento em que se tomava
uma decisão ou um caminho. A partir da decisão que eu tomasse estaria
irremediavelmente condenada a tudo de bom e de ruim que estaria nela embutido.
E alertou: fica de olho. Bom e o mau
sempre fazem parte das conseqüências de qualquer decisão! Sei lá como
conseguiu deixar isto claro sem causar a tal angustia impeditiva de um futuro
livre dela. Talvez por que desde que nasci me havia feito presente de armas e
instrumentos (que foram mudando a cada idade) para que eu pudesse enfrentar os
“ruins” sem que isto impedisse usufruir os “bons”. Neste mesmo sentido (nem
sempre tão explícitos, mas na prática) também se empenharam os outros.
E foi
assim que aportei nos oitenta, nas crônicas, na bisavó, na vida profissional,
nos filhos, nas netas e nas histórias de família tão verdadeiras. O bom e o
ruim aconteceram – e como! – mas fui dando conta. Nem sempre da
melhor maneira ou com total competência. Longe disso! Mas o bastante para
impedir amargura, culpa, frustração e desânimo. Que gente legal aquela. Anjos
da guarda que me fizeram entender, muito depois de terem partido, o sentido do
que me disse um muito querido amigo, Alcione Araujo: implacável o tempo não para; mas, cá pra nós, a vida é ruim, mas é
muito boa!
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