A esta
altura da vida já me conformei: sou incapaz de providenciar a compra dos
presentes relacionados na “Lista de Natal” com a antecedência que me garantiria
tranqüilidade. Nem mesmo a Lista é preparada com a calma necessária a evitar os
esquecimentos dos quais só me dou conta no momento que alguém grita: está na
hora de distribuir os presentes! Faltando apenas alguns dias pego o elevador
desejando estar em Tombuctu onde com certeza não conheço ninguém e poderia
passar os feriados de Natal lendo a montanha de livros, empilhados na mesa de
cabeceira, sem qualquer culpa. Nos pilotis, Ricardinho avança:
- Você já vai sair?
- Vou, Ricardinho. E ‘tou com pressa.
- Aonde você vai?
- Vou comprar presentes de Natal.
- Pra mim?
Pronto!
Danou-se. Ricardinho não está na lista! Como é que eu
esqueci deste tão importante amigo? Minto descaradamente:
- Para você também.
- O quê?
- É surpresa.
Ricardinho
olha para mim em silêncio. Ou não gostou da resposta ou está tentando adivinhar
qual será o presente. Mas o olhar denuncia um pensamento em outras paragens e,
como sempre, ele me surpreende num tom de extrema gravidade:
- Não tem Papai Noel.
Complicou! O
que é que ele espera que eu responda a esta séria afirmação? O silencio agora é
meu.
- Você não sabia?!
- Sabia,
Ricardinho. Há muito tempo que eu sei. Mas seria bom se tivesse, não é? Às vezes
eu até finjo que tem.
- Você é fingida?
- Não!
- É sim, Você finge que tem Papai Noel.
- Você
não finge que sua bicicleta é um foguete?
- Você
não entende nada! Minha bicicleta é um foguete. Foi Papai Noel que me deu.
- Ué! Então tem Papai Noel.
- Falei
que não tem.
- Ricardinho,
Ricardinho, tem ou não tem Papai Noel?
- Você
não entende nada que eu falo! Eu não já falei que tem porque ele me deu a bicicleta e
que ele não pode me dar mais nada porque agora não tem?
Que raio de
lógica é esta? As conversas com Ricardinho são sempre complicadas e eu sempre
me sinto em desvantagem. Deus que me Perdoe, mas foi irritada que respondi:
- Mas
você falou que ele deu a bicicleta. Então tem.
- Você não entende nada mesmo. Eu não já falei
que não tem?
Desisto. E
me despedindo de Ricardinho demando às compras acrescentando mentalmente à
lista o nome de meu pequeno amigo, imperdoavelmente esquecido. Pelos corredores
do shopping a lógica de Ricardinho me atormenta e eis que de repente a luz se
faz: não tem mais, mas tinha quando tinha.
Quando Ricardinho ganhou a bicicleta tinha Papai Noel. Quando eu ganhei
a minha primeira também tinha. Tinha também quando ganhei toda a coleção dos
livros da Condessa de Ségur. As capas eram vermelhas e douradas com ilustrações
a bico de pena. Nunca os vi em
livrarias. Pudera! Eram fabricados por Papai Noel. Anos depois os livros da
Bibliothéque Rose e o Tesouro da Juventude, iguaizinhos a qualquer outros,
foram comprados por Papai. É por que ai já não tinha mais. É isto! Ricardinho
está certo, como sempre: no tempo que tinha, tinha. Percebo encantada que ele
não usou o verbo “existir”. Usou o verbo “ter”. Porque não se tratava mesmo de
existir ou não. O “não existe Papai Noel”, revelação dolorosa que pais e mães
vêm fazendo através dos tempos sempre foi errada. Tem Papai Noel! Só que de
repente não tem mais. E não são tantos os “não têm mais” da vida, trazidos
pelas novas idades? Mas “tinha” antes. E a gente aceita numa boa o “não tem” porque
crescer tem lá suas vantagens e, sobretudo pelos “tinha”. Papai Noel quando
teve, teve. Faz-se urgente, procurar Ricardinho para dizer que entendo.
Entendo, sim. Entendo e agradeço este presente não esperado em tão provecta
idade. E aos que me lêem, quem sabe confusos como eu fiquei, só posso repassar
a frase de Ricardinho: vocês não entendem
nada mesmo. Eu não já falei? E espero que, como eu, terminem por perceber a
sabedoria de meu pequeno filósofo e sintam-se tão bem quanto estou me sentindo
agora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário