terça-feira, setembro 17, 2013

O BELO NA DESTRUIÇÃO

Choro pouco sei eu lá por que. Tristezas e emoções existiram e existem, como para todo mundo, mas raramente me fazem chorar. Acho que são resquícios da educação espartana da Fraulein com seu enérgico “ich gebe zu weinen!” tão logo o meu rosto armava uma expressão de choro. É verdade que esta expressão era esboçada com freqüência e hipocritamente na tentativa de comovê-la a ponto de me liberar das tarefas e obrigações que me impunha. 
Não importa: o fato é que não choro e até invejo os soluços sentidos de vários amigos meus que escuto no escurinho do cinema. Mas existe em mim, quem sabe também causado por Fraulein,  um sentimento recorrente que me ataca nos momentos mais estapafúrdios criando sempre um enorme mal estar: a culpa. Sou sempre culpada! Todas as vezes que desembarco numa alfândega morro de medo achando que vão me pegar ainda que nunca, mas nunca mesmo, tenha ousado escamotear o que quer que seja. Se no volante de um carro escuto um apito, tenho certeza de que é para mim. “Alguma eu devo ter feito”, penso. Se um amigo ou amiga some por uns tempos e não consigo entrar em contato, imagino logo: “aprontei alguma!” 
Mas a maior, a mais monumental das culpas me vem do belo que consigo ver, por vezes, em uma enorme destruição. Volta e meia isto ocorre e a estética, descolando-se da ética, me faz ver maravilhas no que, na verdade, é um horror. Hoje acordo com um mail a mim enviado por um grande amigo mexicano com fotos da destruição causada pela erupção do vulcão Chaitén, no Chile. Deslumbrantes! Diante de cada uma delas, dentro de mim, uma seqüência absurda de pensamentos se encadeou: lindo! Que horror. Não posso estar achando isto bonito! Ai, que beleza! Olha só esta cidade coberta de cinzas! Coisa mais linda. Como é que eu posso pensar isto? Meu Deus do Céu! Olha só a beleza das cores desta lava que escorre sobre a plantação! Cruz, credo vou parar de ver isto. Vou mandar para o Tosta (um amigo e talentoso pintor) ele vai adorar. É um quadro informal! Tão belo! Belo?! E isto durou um longo tempo sem que eu conseguisse parar de ver. Guardo, não guardo; arquivo não arquivo... arquivei! 
E, sem aviso, me vem à memória o mais triste, muito triste. A imagem tenho dentro de mim perfeita, com cores e cheiros como se acontecendo agora. Tinha eu dezoito anos e a vida era mais que gostosa. Noiva, prestes a casar e a me mandar para a Base Aérea de Natal que prometia ser um lugar onde coisas maravilhosas aconteceriam. Estava eu no sítio, em Miguel Pereira, passando minhas últimas férias de solteira. Sou acordada na madrugada por umas batidas na janela. Era Landico, um dos filhos mais velhos do Zinho e da Luiza, ele empregado do sítio; ela a cozinheira. Landico era (eu em segredo o intitulava assim por achar chiquérrimo) meu cavalariço. Ninguém sabia disto e muito menos ele, mas mesmo assim agia como se fosse. Sua voz alarmada me diz: “é melhor você ir até as cocheiras. Dream piorou”.
Saltei pela janela do jeito que estava e corri desabalada. Dream estava deitado no chão da cocheira, arfando. Sentei-me no chão e ajeitei sua cabeça no colo: levanta, Dream. Levanta. E ele tentou. Sei que tentou, mas não conseguiu. Imploro a Landico: Vai! Corre lá na remonta e traz o veterinário. Já! Landico desaparece e eu sossego Dream: vai passar, meu bem, vai passar. Acho que fiquei ali muito tempo. Não sei quanto. Ouço a voz do veterinário: deixa eu examinar, menina. Recuso-me a largar a cabeça: examina comigo aqui mesmo. Ele precisa de mim. Não está vendo?
O exame dura pouco e ele se afasta dizendo o que eu já sabia: tem que sacrificar. Ele não vai levantar. Em pânico digo a Landico: busca seu Teófilo. Já!  Seu Teófilo, o sábio que já o havia salvado uma vez com uma garrafada. E Seu Teófilo chega e rodeia aquele corpo abandonado no chão. Apalpa dali, apalpa daqui, chega à cabeça e me olha com tristeza: vai arribar não, fia. Deixa o moço aqui cuidar disso. O veterinário já está preparando a seringa. Dream olha para mim e eu entendo o que quer. Estendo a mão para pegar aquela horrível seringa e peço que saiam. Ninguém discute.
 Eles saem e um raio de sol entra iluminando a cabeça de Dream, no meu colo. Linda, tão linda. Está tudo tão bonito, eu penso enquanto enfio a agulha couro tão duro, sentindo o cheiro da serragem. O sol inunda a baia. Manchinha, a égua crioula, na baia ao lado observa. Tá olhando o quê? – pergunto – você nunca, nunca vai chegar aos pés dele. O veterinário entra e ausculta. Acabou, diz ele. A palavra não faz o menor sentido. Como acabou?! Fico ali ainda algum tempo. Penso: o pelo está brilhando tanto! Hoje não vai ser preciso escovar. Levanto-me e apago a luz.
Entro em casa e vejo todos na mesa do café. Os tios e a avó me olham esquisito. Preciso dizer alguma coisa antes que falem o que eu não suportaria ouvir. E eles se aquietam e sei que me entendem quando digo: o dia está lindo! O mais bonito deste verão. E, bendita família, ninguém estranha nem comenta eu estar tomando café de pijama.  

2008


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