Choro pouco sei eu lá por que. Tristezas e emoções existiram
e existem, como para todo mundo, mas raramente me fazem chorar. Acho que são
resquícios da educação espartana da Fraulein com seu enérgico “ich gebe zu
weinen!” tão logo o meu rosto armava uma expressão de choro. É verdade que esta
expressão era esboçada com freqüência e hipocritamente na tentativa de
comovê-la a ponto de me liberar das tarefas e obrigações que me impunha.
Não importa: o fato é que não choro e até
invejo os soluços sentidos de vários amigos meus que escuto no escurinho do
cinema. Mas existe em mim, quem sabe também causado por Fraulein, um sentimento recorrente
que me ataca nos momentos mais estapafúrdios criando sempre um enorme mal
estar: a culpa. Sou sempre culpada! Todas as vezes que desembarco numa
alfândega morro de medo achando que vão me pegar ainda que nunca, mas nunca
mesmo, tenha ousado escamotear o que quer que seja. Se no volante de um carro escuto um
apito, tenho certeza de que é para mim. “Alguma eu devo ter feito”, penso. Se
um amigo ou amiga some por uns tempos e não consigo entrar em contato, imagino
logo: “aprontei alguma!”
Mas a maior, a mais monumental das culpas me vem do belo que
consigo ver, por vezes, em uma enorme destruição. Volta e meia isto ocorre e a
estética, descolando-se da ética, me faz ver maravilhas no que, na verdade, é
um horror. Hoje acordo com um mail a mim enviado por um grande amigo mexicano
com fotos da destruição causada pela erupção do vulcão Chaitén, no Chile. Deslumbrantes! Diante de cada uma delas, dentro de mim, uma
seqüência absurda de pensamentos se encadeou: lindo! Que horror. Não posso
estar achando isto bonito! Ai, que beleza! Olha só esta cidade coberta de
cinzas! Coisa mais linda. Como é que eu posso pensar isto? Meu Deus do Céu!
Olha só a beleza das cores desta lava que escorre sobre a plantação! Cruz,
credo vou parar de ver isto. Vou mandar para o Tosta (um amigo e talentoso
pintor) ele vai adorar. É um quadro informal! Tão belo! Belo?! E isto durou um
longo tempo sem que eu conseguisse parar de ver. Guardo, não guardo; arquivo
não arquivo... arquivei!
E, sem aviso, me vem à memória o mais triste,
muito triste. A imagem tenho dentro de mim perfeita, com cores e cheiros
como se acontecendo agora. Tinha eu dezoito anos e a vida era mais que gostosa.
Noiva, prestes a casar e a me mandar para a Base Aérea de Natal que prometia ser um lugar onde coisas maravilhosas aconteceriam. Estava eu no sítio, em Miguel
Pereira, passando minhas últimas férias de solteira. Sou acordada na madrugada
por umas batidas na janela. Era Landico, um dos filhos mais velhos do Zinho e
da Luiza, ele empregado do sítio; ela a cozinheira. Landico era (eu em segredo
o intitulava assim por achar chiquérrimo) meu cavalariço. Ninguém sabia disto e
muito menos ele, mas mesmo assim agia como se fosse. Sua voz alarmada me diz: “é melhor você ir até as cocheiras. Dream
piorou”.
Saltei pela janela do jeito que estava e corri desabalada.
Dream estava deitado no chão da cocheira, arfando. Sentei-me no chão e ajeitei sua cabeça no colo: levanta, Dream. Levanta. E ele tentou. Sei que tentou, mas não
conseguiu. Imploro a Landico: Vai! Corre
lá na remonta e traz o veterinário. Já! Landico desaparece e eu sossego
Dream: vai passar, meu bem, vai passar. Acho
que fiquei ali muito tempo. Não sei quanto. Ouço a voz do veterinário: deixa eu examinar, menina. Recuso-me a
largar a cabeça: examina comigo aqui
mesmo. Ele precisa de mim. Não está vendo?
O exame dura pouco e ele se afasta dizendo o que eu já sabia:
tem que sacrificar. Ele não vai levantar.
Em pânico digo a Landico: busca seu
Teófilo. Já! Seu Teófilo, o sábio
que já o havia salvado uma vez com uma garrafada. E Seu Teófilo chega e rodeia
aquele corpo abandonado no chão. Apalpa dali, apalpa daqui, chega à cabeça e me
olha com tristeza: vai arribar não, fia.
Deixa o moço aqui cuidar disso. O veterinário já está preparando a seringa.
Dream olha para mim e eu entendo o que quer. Estendo a mão para pegar aquela
horrível seringa e peço que saiam. Ninguém discute.
Eles saem e um raio de
sol entra iluminando a cabeça de Dream, no meu colo. Linda, tão linda. Está
tudo tão bonito, eu penso enquanto enfio a agulha couro tão duro, sentindo o
cheiro da serragem. O sol inunda a baia. Manchinha, a égua crioula, na baia ao
lado observa. Tá olhando o quê? –
pergunto – você nunca, nunca vai chegar
aos pés dele. O veterinário entra e ausculta. Acabou, diz ele. A palavra não faz o menor sentido. Como acabou?! Fico ali ainda
algum tempo. Penso: o pelo está brilhando tanto! Hoje não vai ser preciso
escovar. Levanto-me e apago a luz.
Entro em casa e vejo todos na mesa do café. Os tios e a avó
me olham esquisito. Preciso dizer alguma coisa antes que falem o que eu não
suportaria ouvir. E eles se aquietam e sei que me entendem quando digo: o dia está lindo! O mais bonito deste verão.
E, bendita família, ninguém estranha nem comenta eu estar tomando café de pijama.
2008
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