sábado, setembro 07, 2013

NORMALIDADE... SERÁ QUE EXISTE?

Tenho sérias dúvidas. Muito antes de Caetano Veloso declarar que de perto ninguém é normal eu já me havia dado conta disso. E nem é preciso chegar muito perto. De longe já dá pra perceber a não normalidade das gentes pela observação do comportamento, da personalidade e sei lá eu mais onde. Falando assim pode parecer que estou me excluindo das “gentes”, afirmando minha normalidade. Longe disto! Notórias manifestações da “serial clumsy” que sou atestam minha total inclusão no time da não normalidade.

Ontem, ao escutar, sem querer, o diálogo absurdo de um casal a memória deu uma cambalhota e me atirou num passado quando ocorreu um episódio extraordinário. Deixa no chinelo o não normal da conversa escutada se comparada. Dificilmente poderiam hoje ser identificados seus atores, também um casal. Nem eu mesma posso fazer isto já que nunca lhes soube nomes ou origem. Vai ver nem mais estão entre nós e é improvável que possíveis filhos ou netos sejam sabedores da espantosa característica que demonstravam nos momentos de avassaladora intimidade.        
Quis o acaso que desta intimidade fossem testemunhas bem próximas: meu marido, um amigo de infância e eu. Estávamos no verão de 1950. O sofrimento do amigo abandonado pelo grande amor de sua vida nos fez acompanhá-lo, de uma hora para outra, sem planejamento, a um fim de semana em Itatiaia destinado a promover o esquecimento. Naquela época as ligações telefônicas não funcionavam como hoje e não conseguimos fazer reservas. Contando com a sorte saímos do Rio, já muito tarde. Durante a viagem tetamos, meu marido e eu promover o exorcismo da triste paixão. Mas o sofrimento era tanto que não havia como animar nosso infeliz amigo com promessas de grandes amores futuros.

Chegamos ao hotel já tarde e... não havia cabana disponível! Depois de muita parlamentação o gerente nos conseguiu apenas um quarto numa cabana que já tinha o outro ocupado por um casal, com a promessa de que no dia seguinte disporíamos de uma cabana só para nós. Enquanto tentava obter autorização do casal que já se encontrava na cabana, para que nela pudéssemos pernoitar, conseguiu que a cozinha, já fechada, produzisse alguma coisa para comermos. Durante o jantar nosso amigo se lastimou: tinha que ser junto a um casal. Provavelmente recém casados! Nestas horas a felicidade dos outros dói. Dói muito.

Tristes e exaustos fomos levados à cabana com a recomendação de manter silêncio para não perturbar o casal que já se havia recolhido. Recomendação esta que seguimos à risca falando por murmúrios e nos preparando para dormir sem provocar o menor ruído. Esta recomendação, no entanto, não era seguida pelo casal. Através da parede escutávamos delicadas juras de amor que levaram nosso pobre amigo às lágrimas.

Quando já acomodados (meu marido e eu numa cama de casal e o soluçante amigo num colchão no chão), no quarto ao lado o diálogo começa a mudar de tom. Inequivocamente o casal estava iniciando preliminares de um embate amoroso. Nosso amigo parou de chorar. Era impossível conter o riso que tentávamos esconder tapando a boca. Um tanto culpados era impossível não ouvir. Impossível também era alertá-los de que esta escuta estava ocorrendo.

O áudio começa a tomar um ritmo alucinante. Palavras muito esquisitas e exclamações idem denunciavam um cada vez maior ímpeto. O clímax se aproximava e nós três, em cólicas, fazíamos malabarismos para conter o acesso de riso que nos acometia, sem emitir qualquer som E eis que de repente, e não mais que de repente, o rapaz solta um urro com todas as forças de seu ser: diz que seu pai é açougueiro! Diz que seu pai é açougueiro! Inebriada ela grita: Meu pai é açougueiro! Meu pai é açougueiro! E a explosão se dá. Um vulcão em erupção perderia para o casal. A esta altura nós já estávamos passando mal pela tentativa de sufocar o riso. Depois o silêncio.

Custei a dormir empenhada que fiquei na fabulação das possíveis explicações que pudessem justificar o espantoso pedido cujo atendimento, ao que parecia, era indispensável para que pudessem consumar o ato.

No dia seguinte, quando acordamos casal já havia se mandado. No caminho para o restaurante nosso amigo, um talentoso roteirista, desenvolvia uma teoria estranhíssima afirmando que um açougue pode, sim, esconder uma considerável carga de erotismo. Um pernil pendurado num gancho pode levar a fantasias inimagináveis. Como é que ele nunca havia pensado nisto? E um filé então?!

Ao entrarmos no restaurante o gerente nos indica um casal jovem, gordinho e rosado como sendo o gentil hospedeiro daquela noite. Mais normal não podiam ser. Provavelmente a indicação da dupla destinava-se a possibilitar um nosso agradecimento pela hospedagem. Deve ter ficado muito mal impressionado quando não o fizemos e mais ainda quando fomos, meu marido e eu, acometidos de mais um acesso de riso quando nosso amigo o interpela com a maior seriedade: o senhor sabe me dizer se ele ou ela vem de uma família de açougueiros?

2011

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