Tenho sérias dúvidas. Muito antes de Caetano
Veloso declarar que de perto ninguém é normal eu já me havia dado conta disso.
E nem é preciso chegar muito perto. De longe já dá pra perceber a não
normalidade das gentes pela observação do comportamento, da personalidade e sei
lá eu mais onde. Falando assim pode parecer que estou me excluindo das
“gentes”, afirmando minha normalidade. Longe disto! Notórias manifestações da
“serial clumsy” que sou atestam minha total inclusão no time da não
normalidade.
Ontem, ao escutar, sem querer, o diálogo
absurdo de um casal a memória deu uma cambalhota e me atirou num passado quando
ocorreu um episódio extraordinário. Deixa no chinelo o não normal da conversa
escutada se comparada. Dificilmente poderiam hoje ser identificados seus
atores, também um casal. Nem eu mesma posso fazer isto já que nunca lhes soube nomes ou origem.
Vai ver nem mais estão entre nós e é improvável que possíveis filhos ou netos sejam sabedores da espantosa característica que demonstravam nos momentos de
avassaladora intimidade.
Quis o acaso que desta intimidade fossem testemunhas bem
próximas: meu marido, um amigo de infância e eu. Estávamos no verão de 1950. O
sofrimento do amigo abandonado pelo grande amor de sua vida nos fez
acompanhá-lo, de uma hora para outra, sem planejamento, a um fim de semana em
Itatiaia destinado a promover o esquecimento. Naquela época as ligações
telefônicas não funcionavam como hoje e não conseguimos fazer reservas.
Contando com a sorte saímos do Rio, já muito tarde. Durante a viagem tetamos, meu marido e eu promover o exorcismo da triste paixão. Mas o sofrimento era tanto que não havia como animar
nosso infeliz amigo com promessas de grandes amores futuros.
Chegamos ao hotel já tarde e... não havia
cabana disponível! Depois de muita parlamentação o gerente nos conseguiu apenas
um quarto numa cabana que já tinha o outro ocupado por um casal, com a promessa
de que no dia seguinte disporíamos de uma cabana só para nós. Enquanto tentava
obter autorização do casal que já se encontrava na cabana, para que nela
pudéssemos pernoitar, conseguiu que a cozinha, já fechada, produzisse alguma
coisa para comermos. Durante o jantar nosso amigo se lastimou: tinha que ser
junto a um casal. Provavelmente recém casados! Nestas horas a felicidade dos
outros dói. Dói muito.
Tristes e exaustos fomos levados à cabana com
a recomendação de manter silêncio para não perturbar o casal que já se havia
recolhido. Recomendação esta que seguimos à risca falando por murmúrios e nos
preparando para dormir sem provocar o menor ruído. Esta recomendação, no
entanto, não era seguida pelo casal. Através da parede escutávamos delicadas
juras de amor que levaram nosso pobre amigo às lágrimas.
Quando já acomodados (meu marido e eu numa
cama de casal e o soluçante amigo num colchão no chão), no quarto ao lado o
diálogo começa a mudar de tom. Inequivocamente o casal estava iniciando
preliminares de um embate amoroso. Nosso amigo parou de chorar. Era impossível
conter o riso que tentávamos esconder tapando a boca. Um tanto culpados era
impossível não ouvir. Impossível também era alertá-los de que esta escuta
estava ocorrendo.
O áudio começa a tomar um ritmo alucinante.
Palavras muito esquisitas e exclamações idem denunciavam um cada vez maior
ímpeto. O clímax se aproximava e nós três, em cólicas, fazíamos malabarismos
para conter o acesso de riso que nos acometia, sem emitir qualquer som E eis
que de repente, e não mais que de repente, o rapaz solta um urro com todas as
forças de seu ser: diz que seu pai é
açougueiro! Diz que seu pai é açougueiro! Inebriada ela grita: Meu pai é açougueiro! Meu pai é açougueiro!
E a explosão se dá. Um vulcão em erupção perderia para o casal. A esta altura
nós já estávamos passando mal pela tentativa de sufocar o riso. Depois o
silêncio.
Custei a dormir empenhada que fiquei na
fabulação das possíveis explicações que pudessem justificar o espantoso pedido
cujo atendimento, ao que parecia, era indispensável para que pudessem consumar
o ato.
No dia seguinte, quando acordamos casal já
havia se mandado. No caminho para o restaurante nosso amigo, um talentoso
roteirista, desenvolvia uma teoria estranhíssima afirmando que um açougue pode,
sim, esconder uma considerável carga de erotismo. Um pernil pendurado num
gancho pode levar a fantasias inimagináveis. Como é que ele nunca havia pensado
nisto? E um filé então?!
Ao entrarmos no restaurante o gerente nos
indica um casal jovem, gordinho e rosado como sendo o gentil hospedeiro daquela
noite. Mais normal não podiam ser. Provavelmente a indicação da dupla
destinava-se a possibilitar um nosso agradecimento pela hospedagem. Deve ter
ficado muito mal impressionado quando não o fizemos e mais ainda quando fomos,
meu marido e eu, acometidos de mais um acesso de riso quando nosso amigo o
interpela com a maior seriedade: o senhor
sabe me dizer se ele ou ela vem de uma família de açougueiros?
2011
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