Naquela época tecnologia ainda não era assunto que, como
hoje, até crianças dominam. Lembro-me que nos maravilhávamos com o radar e o
sonar, surgidos na guerra que nos pareciam o mágico invisível varando céus e
mares. Estávamos no final dos anos quarenta. Recém admitida no grupo dos
adultos, prestes a casar, já considerada um membro opinante, tomei parte ativa
na séria decisão que se pousava naquele verão: importar uma família japonesa
para plantar, de meia, tomates no sítio.
Até hoje não sei por que razão isto se deu: se era apenas
mais uma novidade ou se era necessário garantir um aporte financeiro para a
manutenção do sítio. Esta última – creio - jamais seria confessada. Dinheiro
sempre foi considerado assunto de profundo mau gosto, jamais verbalizado no
fórum presidido por minha Avó. Outras tentativas de produção haviam precedido a
esta sem o menor sucesso. Uma delas, a criação de coelhos - funesta iniciativa
minha - sucumbiu face à espantosa proliferação dos mesmos e a minha recusa em
vendê-los ao açougue. Quando chegou ao ponto de “ou coelhos ou nós” tive que me
livrar deles, aos prantos.
Mas voltando à família japonesa e aos tomates. Eles chegaram,
creio que direto da Ilha das Flores, e sem falar uma palavra de português.
Saito e Kani - o casal – traziam consigo os filhos Tetuo, Namiko, Tioko, Euxico
e Eukiko. Aqui vale um parêntese: um ano depois da chegada, Kani apareceu
grávida e, ainda não dominando bem o português, nos consultou sobre o nome a
ser dado ao novo rebento que sucederia, na ordem, à bela menina Eukiko. Meu
irmão sugeriu Tu Quicas e acho até que seria aceito não fosse a intervenção
indignada da família que impediu
este absurdo.
A instalação dos imigrantes e a negociação para o início da
plantação foi complicadíssima. Tínhamos como interprete, um japonês de uma
fazenda ficava bem distante do sítio, que passou dois dias intermediando as
parlamentações que resultaram numa lista quilométrica de apetrechos e
instalações necessárias à plantação dos tomateiros. Lembro-me que o
“indispensável” rotulava alguns itens sendo, um deles, a construção de um
galpão para armazenar as caixas dos tomates colhidos que iriam aguardar o
transporte. Este, entre outras especificações, deveria ser dotado de um teto de
telhas de alumínio.
E foi ai que entrou a tecnologia. Durante meses louvamos e
admiramos o conhecimento japonês contrapondo-o a ignorância de nossos
trabalhadores rurais tupiniquins. Impossibilitados de obter esclarecimentos
pela barreira da língua, desenvolvemos diversas teorias a respeito do efeito de
telhas de alumínio sobre tomates recém-colhidos. Discussões intermináveis
respaldavam a tese de cada um: temperatura, luminosidade, grau da umidade e que
mais sei eu.
A competência de Kani e Saito foi atestada pela horta que
surgiu como num passe de mágica, em tempo recorde, garantindo o “da horta para
o prato” a cada refeição. E lá vai outro parêntese para que eu relate um fato
que era profundamente divertido: diariamente minha mãe ou uma de minhas tias ia
buscar as verduras que seriam servidas no almoço e no jantar. No momento em que
chegavam à horta, acompanhadas de uma Kani sorridente, iniciava-se um discurso
estranhíssimo. Ajudadas por mímica expressiva, num tom de voz muito agudo e
falando sincopado, sem o uso de qualquer conectivo, eliminando ainda algumas
letras, elas formulavam frases como estas: alface...
vedinha... .folha gaaande... muito. O “gaaande” era ilustrado com um gesto
de amplitude espantosa que indicava folhas de alface monumentais. A palavra
pimentão era dividida em sílabas que tomavam um tom de crescente intensidade
terminando sempre numa exclamação entusiasmada de vitória: pi – men- TOM! E
inexplicavelmente chuchu se transformava em “sussu” sempre pronunciado duas
vezes, sabe-se lá por que. Abóbora era sempre “vemelinha”. E para coroar, as
frases sempre terminavam por uma negativa interrogativa: no?
Mas o problema da tecnologia foi outro. A plantação já
frutificava com espantoso sucesso dando a nós e ao casal lucros nunca
imaginados quando Saito começou a dominar a língua portuguesa com total
maestria ao contrário de Kani que havia sido para todo sempre prejudicada pelo
estranho dialeto criado por minha mãe e minhas tias. E eis que chega o dia em
que finalmente iríamos elucidar o extraordinário efeito das caríssimas telhas
de alumínio.
Convoca-se Saito à casa e solene meu tio cavaleiro faz a
pergunta: Saito, qual a influência das
telhas de alumínio nos tomates colhidos? É a temperatura, não é? E, já se
sentido vitorioso, ele olha para os demais esperando ver atestado o acerto da hipótese
que havia formulado, contrapondo-se às demais. Saito abre um radiante sorriso,
fornecendo a explicação que nos deixa a todos furiosos, face ao preço que
havía sido pago elas malditas telha: Efeito
nada! Tomate nem liga! Tomate fica qualquer lugar qualquer jeito. E
prossegue encantado: Mas telha alumínio
manhã quando o sol bate “bilha, bilha”! Muito lindo, no?
2008
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