domingo, setembro 15, 2013

TECNOLOGIA JAPONESA

Naquela época tecnologia ainda não era assunto que, como hoje, até crianças dominam. Lembro-me que nos maravilhávamos com o radar e o sonar, surgidos na guerra que nos pareciam o mágico invisível varando céus e mares. Estávamos no final dos anos quarenta. Recém admitida no grupo dos adultos, prestes a casar, já considerada um membro opinante, tomei parte ativa na séria decisão que se pousava naquele verão: importar uma família japonesa para plantar, de meia, tomates no sítio.
Até hoje não sei por que razão isto se deu: se era apenas mais uma novidade ou se era necessário garantir um aporte financeiro para a manutenção do sítio. Esta última – creio - jamais seria confessada. Dinheiro sempre foi considerado assunto de profundo mau gosto, jamais verbalizado no fórum presidido por minha Avó. Outras tentativas de produção haviam precedido a esta sem o menor sucesso. Uma delas, a criação de coelhos - funesta iniciativa minha - sucumbiu face à espantosa proliferação dos mesmos e a minha recusa em vendê-los ao açougue. Quando chegou ao ponto de “ou coelhos ou nós” tive que me livrar deles, aos prantos.
Mas voltando à família japonesa e aos tomates. Eles chegaram, creio que direto da Ilha das Flores, e sem falar uma palavra de português. Saito e Kani - o casal – traziam consigo os filhos Tetuo, Namiko, Tioko, Euxico e Eukiko. Aqui vale um parêntese: um ano depois da chegada, Kani apareceu grávida e, ainda não dominando bem o português, nos consultou sobre o nome a ser dado ao novo rebento que sucederia, na ordem, à bela menina Eukiko. Meu irmão sugeriu Tu Quicas e acho até que seria aceito não fosse a intervenção indignada da família que impediu este absurdo.
A instalação dos imigrantes e a negociação para o início da plantação foi complicadíssima. Tínhamos como interprete, um japonês de uma fazenda ficava bem distante do sítio, que passou dois dias intermediando as parlamentações que resultaram numa lista quilométrica de apetrechos e instalações necessárias à plantação dos tomateiros. Lembro-me que o “indispensável” rotulava alguns itens sendo, um deles, a construção de um galpão para armazenar as caixas dos tomates colhidos que iriam aguardar o transporte. Este, entre outras especificações, deveria ser dotado de um teto de telhas de alumínio.
E foi ai que entrou a tecnologia. Durante meses louvamos e admiramos o conhecimento japonês contrapondo-o a ignorância de nossos trabalhadores rurais tupiniquins. Impossibilitados de obter esclarecimentos pela barreira da língua, desenvolvemos diversas teorias a respeito do efeito de telhas de alumínio sobre tomates recém-colhidos. Discussões intermináveis respaldavam a tese de cada um: temperatura, luminosidade, grau da umidade e que mais sei eu.
A competência de Kani e Saito foi atestada pela horta que surgiu como num passe de mágica, em tempo recorde, garantindo o “da horta para o prato” a cada refeição. E lá vai outro parêntese para que eu relate um fato que era profundamente divertido: diariamente minha mãe ou uma de minhas tias ia buscar as verduras que seriam servidas no almoço e no jantar. No momento em que chegavam à horta, acompanhadas de uma Kani sorridente, iniciava-se um discurso estranhíssimo. Ajudadas por mímica expressiva, num tom de voz muito agudo e falando sincopado, sem o uso de qualquer conectivo, eliminando ainda algumas letras, elas formulavam frases como estas: alface... vedinha... .folha gaaande... muito. O “gaaande” era ilustrado com um gesto de amplitude espantosa que indicava folhas de alface monumentais. A palavra pimentão era dividida em sílabas que tomavam um tom de crescente intensidade terminando sempre numa exclamação entusiasmada de vitória: pi – men- TOM! E inexplicavelmente chuchu se transformava em “sussu” sempre pronunciado duas vezes, sabe-se lá por que. Abóbora era sempre “vemelinha”. E para coroar, as frases sempre terminavam por uma negativa interrogativa: no?
Mas o problema da tecnologia foi outro. A plantação já frutificava com espantoso sucesso dando a nós e ao casal lucros nunca imaginados quando Saito começou a dominar a língua portuguesa com total maestria ao contrário de Kani que havia sido para todo sempre prejudicada pelo estranho dialeto criado por minha mãe e minhas tias. E eis que chega o dia em que finalmente iríamos elucidar o extraordinário efeito das caríssimas telhas de alumínio.
Convoca-se Saito à casa e solene meu tio cavaleiro faz a pergunta: Saito, qual a influência das telhas de alumínio nos tomates colhidos? É a temperatura, não é? E, já se sentido vitorioso, ele olha para os demais esperando ver atestado o acerto da hipótese que havia formulado, contrapondo-se às demais. Saito abre um radiante sorriso, fornecendo a explicação que nos deixa a todos furiosos, face ao preço que havía sido pago elas malditas telha: Efeito nada! Tomate nem liga! Tomate fica qualquer lugar qualquer jeito. E prossegue encantado: Mas telha alumínio manhã quando o sol bate “bilha, bilha”! Muito lindo, no? 


2008

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