Raro dia em que não me
chega uma apresentação em Power Point, escorrendo mel pela tela. E raramente as
leio, mesmo por que quase sempre são correntes que me fazem ameaças terríveis
caso não as envie a, no mínimo, doze pessoas. O por que deste número cabalístico nunca entendi. Mas eis que outro dia o título de uma me chamou atenção
e resolvi ler: falava de saudade. E terminava me informando que saudade é o amor que fica. Bonito, né?
Mais que isto verdadeiro. É quase sempre amor e vem pra ficar, sim. Me dou conta
de que saudade está longe de ser um substantivo abstrato.
Saudade é pra lá de
sólida. Os cinco sentidos são por ela estimulados o que não aconteceria se
fosse abstrata. Saudade existe em minha vida. E me transporta para um mundo
mágico, para um lugar deliciosamente bom. Uma das mais antigas é a de meu
cavalo Dream Boy comendo cenoura. Sentada em cima da baia eu me fazia conviva
daquele banquete tão colorido. Era incrível. Vinha-me a vontade de comer também
e eu morria de inveja porque não conseguia sentir igual prazer ao mastigar uma
cenoura. Conduzidos pelo incrível som da mastigação prazerosa os demais
sentidos acordavam: minha mão deslizando por sua crina, meu olhar maravilhado
pelo seu porte majestoso, o cheiro de serragem tomando conta da cocheira.
Ficava faltando o gosto. Cenoura nunca foi para mim o que era para ele. Pena!
Dream Boy é responsável
por muitas saudades. Do vento, por exemplo. Sei lá eu por que, nós (ele e eu)
gostávamos de galopar no cocuruto do morro, contra a ventania que precedia a
chuva. Sólido o vento, sólida nossa luta. Por que era uma luta. O vento era o
inimigo e contra ele nos jogávamos intrépidos. Da casa vinham gritos: sai daí menina maluca! Os raios vão começar
a cair. Ao som do primeiro raio desabalávamos morro abaixo, chegando às
cocheiras encharcados e rindo muito. É... Dream ria... Sei que é difícil acreditar,
mas ria. Dream era um cavalo ser humano.
E a saudade do barulho
quase imperceptível das cobras no túnel de bambu, à noite? Quase sempre cabia a
nós dois buscar os pães que saiam na primeira fornada da noite na padaria do
então vilarejo de Estiva, hoje uma cidade: Miguel Pereira. O túnel de bambu,
que hoje ainda dá acesso à casa, mesmo em noite de luar era muito, muito
escuro. Dream escutava o mover das cobras bem antes de mim. Então diminuía o
trote e orelhas esticavam-se para frente. Aí ele soltava o ar num resfolegar
discreto para chamar minha atenção para o perigo. E eu dizia: tô escutando. É cobra, sim. Mas tudo bem! Ciente de que eu havia percebido seu alerta,
sossegava e voltava ao trote. Ele sabia que juntos éramos imbatíveis.
Nesta saudade engata
outra do que acontecia na seqüência da busca dos pães: a ceia das dez horas.
Família reunida na mesa, o chocolate quente, às vezes gemada com vinho do porto
e as conversas. Ah! As conversas! Outro engate: o sono que vinha manso como
hoje não vem. E coroando tudo o cheiro da água da colônia inglesa de meu pai me
dando boa noite Eu já na cama; eu já quase dormindo. No escuro, através da porta, abafadas, as vozes da sala vinham
fabricando segurança. Tanta que o sentido do que diziam não importava. O som de
todas elas, tão queridas, tão especiais, tão denunciadoras de seus emitentes me
assegurava que o mundo era perfeito e que entre cavalos, pais, avó, tios e
primos a vida era bela.
E Babá? A voz dizendo minha nega mesmo quando já “babasando”
meus filhos. E eu voltava a ser aquela de então na vontade irresistível de
pular para aquele colo tão confortável e protetor. Quando ela se foi eu já
tinha uma neta e a vontade de pular para o colo era a mesma.
E por fim, e definitiva,
a voz de meu filho mais velho, aos quatro anos, na incredulidade do que seria a
morte: mas eu não posso ir agarrado na
sua perninha? Não posso guardar sua cabecinha? Naquele tempo eu não soube
dizer a ele que de certo modo eu ficaria presente na saudade. E como é eu podia saber
que seria ele, e não eu, a ficar como saudade? Naquele tempo eu havia vivido
tão pouco que saudade não tinha vez. Depois passou a ter. Não fiquei com a
cabecinha dele, nem agarrei a perninha. Mas não é que ele ficou? Na voz, no
cheiro, na imagem tão nítida de ter se tornado, estranhamente, meu filho mais
moço. Numa saudade tão grande que tornou impossível competir com as outras.
E foi aí que tudo se juntou
numa saudade só. Única. Como pode ser abstrata? Se tem tamanho, cheiro, imagem,
cor, voz e presença? Se me acompanha no todo dia formada pela voz de meu filho,
por Babá que me põe no colo, pelo perfume de água de colônia inglesa que traz
meu pai para perto, pelo som de Dream mastigando cenouras? E desta imensidão de
saudade me vem uma certeza: ainda que cobras se escondam entre os bambus da
vida eu consigo ouvir Gonzaguinha se juntando a vida, Ele que sabia das coisas e da
beleza de ser um eterno aprendiz. Com ele, tão sábio, aprendi que a vida devia
ser bem melhor. E será? Mas isto não impede que eu repita. É bonita, é bonita,
é bonita.
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