sábado, dezembro 21, 2013

VERÃO DE 1945 TORNA-SE O INVERNO DE 2006

Em uma de minhas crônicas a figura da velha tonta era – confesso – uma licença poética. Pensava eu! Mas diante do acontecido há poucas horas, vejo que não é. Parada à espera da abertura do sinal na Macedo Sobrinho com a rua Humaitá, ao lado de um jovem rapaz negro que fazia o mesmo, estava eu às voltas com a solução de um sério problema: ir primeiro à loja de ferragens e depois à padaria ou vice-versa. Podem imaginar vocês que isto não exigisse uma séria reflexão, mas ela – a reflexão - era, sim, necessária.

Na padaria eu teria que, feitas as compras, pedir que entregassem em casa e não havia ninguém para recebê-las, portanto eu deveria sair correndo antes que o eficiente entregador as trouxesse. E correr ladeira acima hoje em dia é uma impossibilidade. Tudo parecia recomendar deixar a padaria para o segundo lugar. Mas ocorre que na loja de ferragens dar-se-ia a mesma situação. È óbvio que eu poderia pedir a ambos que retardassem a entrega. Melhor seria fazer este pedido na loja de ferragens porque na padaria eu compraria congelados e.... o sinal abriu, fechou de novo e eu nem me apercebi, perdida que estava em meus pensamentos.

E eis que sinto a mão do jovem negro pousar em meu braço com delicadeza. Volto-me surpresa para ele:

-   A senhora está confusa, não está?

Sem me dar conta do que estava acontecendo respondo surpresa, ainda no tom de minha dúvida.

- Estou mesmo. Não sei se vou à padaria ou à loja de ferragens.

A voz mansa veio carinhosa junto com o apoderar-se firme de meu braço:

-  Não é melhor ir para casa? Eu levo a senhora...

Só então me dei conta do que estava sucedendo. Minha gargalhada desconcertou o rapaz que desfeito o mal entendido tentou desculpar-se, envergonhado. Tratei logo de deixá-lo à vontade, descartando as desculpas.  

- Não fica assim. Você foi muito legal, juro. Espero que esteja ao meu lado quando e se de fato acontecer o que você pensou que estivesse acontecendo. Eu estou muito agradecida, acredite. E olha, aceito seu braço para atravessar a rua.

Do outro lado, nos despedimos e ele se foi para esquerda e eu para direita. Mandei para longe a torrente de pensamentos que de mim tomou conta. Não posso me arriscar a uma segunda vez no mesmo dia, pensei. Melhor deixar pra pensar em casa.

Guardadas as compras (primeiro as da padaria depois as da loja de ferragens) o telefone soa. Uma amiga, a quem relato o divertido incidente. Pasmei diante da reação. Ela ficou indignada: que desaforo! Pensar que você está gagá. Não houve jeito de convencê-la de que tudo levara a crer ao jovem que de fato eu estava completamente desorientada e que ele havia sido mais que gentil.

E se tivesse sido verdade o que ele intuíra? Não seria incrível o preocupar-se em devolver à segurança da casa aquela confusa senhora? Mas não teve jeito. Ela estava não se rendia aos meus argumentos. E às tantas declara: você está ótima! Esta afirmativa entusiasmada evidenciou que isto era um feito memorável e que eu estava, contra todas as probabilidades, “ótima”. Mas o mais absurdo veio depois: você fica achando graça neste rapaz détraqué! Sem se dar conta, com esta palavra, ela estava denunciando a idade. Ninguém mais diz isto!. Détraqué?! Aquele simpático rapaz?

Desisti de convencê-la e voltei às minhas elucubrações: eu havia perdido uma oportunidade única que provavelmente é oferecida a poucas pessoas. E se eu tivesse assumido o papel e fingisse que realmente estava totalmente desorientada? Poderia viver um episódio que se um dia de fato ocorrer, dele não vou ter consciência. Como é que aquele rapaz conseguiria descobrir minha casa, minha família? Como é que reagiriam as pessoas a quem pedisse ajuda ou informações? Eu havia mencionado a padaria. Será que ele iria até lá me levando a reboque, buscando uma identificação? E como é que se comportaria aquela simpática moça que sempre me atende? Ela sabe meu endereço. Viria com ele até aqui? O dois me amparando ladeira acima? Não tendo ninguém em casa o que faria o novo porteiro que não é mais o Zé de tantos anos e mal que me conhece? Como é que durante todo este processo se relacionariam comigo?

Seria como o ensaio geral de um futuro possível. E eu que perdi isto! Esta encenação seria, é claro, uma maldade e do maior mal caratismo com aquelas boas almas que, tenho certeza me ajudariam. Teria sido mal fazer isto. Mas para mim poderia ser uma experiência incrível e tenho certeza vivida por poucos. Volto a telefonar para a amiga para contar o que estava maquinando e eis que ouço dela numa voz indignada: “sabe de uma coisa? Você mereceu o desaforo. Está mesmo gagá !”
2006


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