Em
uma de minhas crônicas a figura da velha tonta era – confesso – uma licença
poética. Pensava eu! Mas diante do acontecido há poucas horas, vejo que não é.
Parada à espera da abertura do sinal na Macedo Sobrinho com a rua Humaitá, ao
lado de um jovem rapaz negro que fazia o mesmo, estava eu às voltas com a
solução de um sério problema: ir primeiro à loja de ferragens e depois à
padaria ou vice-versa. Podem imaginar vocês que isto não exigisse uma séria
reflexão, mas ela – a reflexão - era, sim, necessária.
Na
padaria eu teria que, feitas as compras, pedir que entregassem em casa e não
havia ninguém para recebê-las, portanto eu deveria sair correndo antes que o
eficiente entregador as trouxesse. E correr ladeira acima hoje em dia é uma
impossibilidade. Tudo parecia recomendar deixar a padaria para o segundo lugar.
Mas ocorre que na loja de ferragens dar-se-ia a mesma situação. È óbvio que eu
poderia pedir a ambos que retardassem a entrega. Melhor seria fazer este pedido
na loja de ferragens porque na padaria eu compraria congelados e.... o sinal
abriu, fechou de novo e eu nem me apercebi, perdida que estava em meus
pensamentos.
E
eis que sinto a mão do jovem negro pousar em meu braço com delicadeza. Volto-me
surpresa para ele:
- A senhora está confusa, não está?
Sem
me dar conta do que estava acontecendo respondo surpresa, ainda no tom de minha
dúvida.
- Estou mesmo. Não sei se vou à padaria ou à
loja de ferragens.
A
voz mansa veio carinhosa junto com o apoderar-se firme de meu braço:
- Não é melhor ir para casa? Eu levo a
senhora...
Só
então me dei conta do que estava sucedendo. Minha gargalhada desconcertou o
rapaz que desfeito o mal entendido tentou desculpar-se, envergonhado. Tratei
logo de deixá-lo à vontade, descartando as desculpas.
- Não fica assim. Você foi muito legal, juro.
Espero que esteja ao meu lado quando e se de fato acontecer o que você pensou
que estivesse acontecendo. Eu estou muito agradecida, acredite. E olha, aceito
seu braço para atravessar a rua.
Do outro lado, nos despedimos e ele
se foi para esquerda e eu para direita. Mandei para longe a torrente de
pensamentos que de mim tomou conta. Não posso me arriscar a uma segunda vez no
mesmo dia, pensei. Melhor deixar pra pensar em casa.
Guardadas as
compras (primeiro as da padaria depois as da loja de ferragens) o telefone soa.
Uma amiga, a quem relato o divertido incidente. Pasmei diante da reação. Ela
ficou indignada: que desaforo! Pensar
que você está gagá. Não houve jeito de convencê-la de que tudo levara a
crer ao jovem que de fato eu estava completamente desorientada e que ele havia
sido mais que gentil.
E se tivesse
sido verdade o que ele intuíra? Não seria incrível o preocupar-se em devolver à
segurança da casa aquela confusa senhora? Mas não teve jeito. Ela estava não se
rendia aos meus argumentos. E às tantas declara: você está ótima! Esta afirmativa entusiasmada evidenciou que
isto era um feito memorável e que eu estava, contra todas as probabilidades,
“ótima”. Mas o mais absurdo veio depois: você fica achando graça neste rapaz détraqué! Sem se dar conta, com esta
palavra, ela estava denunciando a idade. Ninguém mais diz isto!. Détraqué?! Aquele simpático rapaz?
Desisti de
convencê-la e voltei às minhas elucubrações: eu havia perdido uma oportunidade
única que provavelmente é oferecida a poucas pessoas. E se eu tivesse assumido
o papel e fingisse que realmente estava totalmente desorientada? Poderia viver
um episódio que se um dia de fato ocorrer, dele não vou ter consciência. Como é
que aquele rapaz conseguiria descobrir minha casa, minha família? Como é que
reagiriam as pessoas a quem pedisse ajuda ou informações? Eu havia mencionado a
padaria. Será que ele iria até lá me levando a reboque, buscando uma
identificação? E como é que se comportaria aquela simpática moça que sempre me
atende? Ela sabe meu endereço. Viria com ele até aqui? O dois me amparando
ladeira acima? Não tendo ninguém em casa o que faria o novo porteiro que não é
mais o Zé de tantos anos e mal que me conhece? Como é que durante todo este
processo se relacionariam comigo?
Seria como o
ensaio geral de um futuro possível. E eu que perdi isto! Esta encenação seria,
é claro, uma maldade e do maior mal caratismo com aquelas boas almas que, tenho
certeza me ajudariam. Teria sido mal fazer isto. Mas para mim poderia ser uma
experiência incrível e tenho certeza vivida por poucos. Volto a telefonar para
a amiga para contar o que estava maquinando e eis que ouço dela numa voz
indignada: “sabe de uma coisa? Você
mereceu o desaforo. Está mesmo gagá !”
2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário