sexta-feira, dezembro 13, 2013

MINHAS HUN ESTÃO EM FUGA

Respeito demais a Milenar Medicina Chinesa, portanto não posso duvidar que as HUN estejam prestes a abandonar meu fígado. Terrível desastre, este! Eu que nem as sabia existentes e muito menos que habitavam minha cavidade abdominal! Um amigo, daqueles que nos invadem com exibições em Power Point, destilando açucarados ensinamentos de auto-ajuda, enviou-me uma sobre o fígado. Desgraçadamente não tive o procedimento habitual: catapultar a lengalenga de volta para o espaço virtual, sem ler. E o fígado, que nunca me incomodou, tornou-se meu algoz! Informa-me o texto que o dito jamais nos avisa que está sendo agredido ou mesmo que está agonizando. Sofre em silêncio, o desgraçado, mesmo quando vítima das mais graves agressões.

Fiquei em pânico e resolvi ler toda a apresentação para descobrir por que razão age com tanta deslealdade e incompetência. Afinal tem uma enorme responsabilidade gerindo mais de 5.000 funções que me são indispensáveis!  Como é que um ... Eu ia dizendo órgão, mas depois que li o que li não posso relegá-lo a esta banal condição em igualdade com, por exemplo, o tão sem graça intestino. Isto porque o fígado, pasmem, é habitado pelas HUN, seres espirituais  responsáveis por sentirmos felicidade, alegria, bem estar e saúde. Anjos biliares, creio. 

Ocorre que no momento em que somos possuídos por sentimentos menores, sobretudo por raiva, toxinas são criadas invadindo o fígado e expulsando as HUN. Estas ao invés de enfrentá-las como faz com outras toxinas criadas por agentes físicos covardemente batem em retirada nos abandonando a nossa própria sorte, melhor dizendo, às nossas próprias e virulentas toxinas, indo pousar sabe-se lá onde. Quem sabe no fígado saudável de algum santo homem (ou mulher) capaz de um estado de beatitude de 24 horas por dia.  A vida sem HUN é terrível.

Desprovido das HUN o fígado endurece e nos transforma em seres violentos, desagradáveis, grosseiros, incapazes de qualquer tipo de relacionamento. Casamentos até então perfeitos se desfazem da noite para o dia, amizades de anos são rompidas, perde-se o emprego e os vizinhos não mais nos cumprimentam. Até os animais de estimação se afastam desgostosos. Um horror! Para que as HUN retornem (e isto é possível) é necessário que passemos a aceitar sem raiva ou animosidade todas as circunstâncias de vida e todos os seres humanos! Caramba! Todos?!

Como é que eu vou conseguir sorrir diante das enchentes acontecidas em Friburgo, Teresópolis e pelo Brasil afora sabendo que milhares de famílias perderam filhos, pais, seres que amavam; perderam suas casas com tudo que dentro havia por incompetência e descaso de administradores, ao longo dos anos? Como “aceitar” estes assassinos? Como não sentir raiva quando vejo educação e saúde relegadas a uma não importância neste País? Como ficar indiferente ao ler a nova versão proposta para o Código Florestal e aceitar sorrindo o parecer de Aldo Rabelo? Isto seria bater palma para palhaço dançar, atitude que depois que não mais frequento circos me recuso adotar.

Num âmbito muito menor, mas diário, como sorrir para aquela mulher bruxa, que certamente já nasceu sem HUN, e que transforma as reuniões de condomínio num pugilato profundamente desagradável? E as torneiras que pingam? Tenho raiva, sim. Várias vezes por dia! E agora sei que em razão disto estou prestes a ficar sem HUN. Digo prestes porque – creio – ainda disponho de algumas que me fazem feliz quando estou com minhas netas, meus filhos, meu irmão, meus amigos; quando olho para a mangueira tão linda, imune às agressões que a urbanização lhe faz; quando os gatos Pandareco e Marta me acordam passando muito de leve a patinha em meu rosto, miando carinhosamente; quando leio um bom livro, quando escuto Satie; quando conheço alguém interessante; quando penso que dentro de três meses serei bisavó; quando ligo meu celular e leio, encantada, a mensagem permanente colocada por minha neta adolescente: te amo Vovó Anna! Quando o porteiro sorri e mente carinhoso: a senhora está muito bonita hoje, D. Anna. Quando a amiga telefona só pra dizer que está com saudade.

São tantas as benesses! Mas, ao que parece, insuficientes para que as HUN permaneçam. Isto só aconteceria se eu jamais fosse possuída de sentimentos menores. Não tem jeito, não! Portanto não se espantem se gradativamente, correspondendo ao desaparecimento progressivo das HUN, estas crônicas se tornarem amargas, agressivas e desagradáveis. Isto será resultante de um fígado desabitado e endurecido. Mas não terão que me aturar por muito tempo: desprovida de HUN vou ser demitida do Montbläat e, o que é pior, perdendo meus queridos editores e grandes amigos Fritz e Liége.

Assim vaticina a Milenar Medicina Chinesa. Entre as pessoas contra as quais sinto raiva está agora o amigo que me enviou esta desgraça. Vai ver ele o fez na pior das intenções porque também está sendo abandonado pelas HUN e, impiedoso, se vinga destruindo meu bem estar. Juro que não é o que estou querendo fazer a vocês que me lêem. Amparada pelas poucas HUN que ainda habitam meu já parcialmente desprecatado fígado, desejo de coração (órgão que para mim agora decresceu em importância) que consigam conservar para sempre a higidez e saúde de suas HUN.
2011


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