Respeito demais a Milenar Medicina Chinesa,
portanto não posso duvidar que as HUN estejam prestes a abandonar meu fígado.
Terrível desastre, este! Eu que nem as sabia existentes e muito menos que
habitavam minha cavidade abdominal! Um amigo, daqueles que nos invadem com
exibições em Power Point, destilando açucarados ensinamentos de auto-ajuda,
enviou-me uma sobre o fígado. Desgraçadamente não tive o procedimento habitual:
catapultar a lengalenga de volta para o espaço virtual, sem ler. E o fígado,
que nunca me incomodou, tornou-se meu algoz! Informa-me o texto que o dito
jamais nos avisa que está sendo agredido ou mesmo que está agonizando. Sofre em
silêncio, o desgraçado, mesmo quando vítima das mais graves agressões.
Fiquei em pânico e resolvi ler toda a
apresentação para descobrir por que razão age com tanta deslealdade e
incompetência. Afinal tem uma enorme responsabilidade gerindo mais de 5.000
funções que me são indispensáveis! Como
é que um ... Eu ia dizendo órgão, mas depois que li o que li não posso
relegá-lo a esta banal condição em igualdade com, por exemplo, o tão sem graça
intestino. Isto porque o fígado, pasmem, é habitado pelas HUN, seres
espirituais responsáveis por sentirmos
felicidade, alegria, bem estar e saúde. Anjos biliares, creio.
Ocorre que no momento em que somos possuídos
por sentimentos menores, sobretudo por raiva, toxinas são criadas invadindo o
fígado e expulsando as HUN. Estas ao invés de enfrentá-las como faz com outras
toxinas criadas por agentes físicos covardemente batem em retirada nos abandonando a nossa
própria sorte, melhor dizendo, às nossas próprias e virulentas toxinas, indo
pousar sabe-se lá onde. Quem sabe no fígado saudável de algum santo homem (ou
mulher) capaz de um estado de beatitude de 24 horas por dia. A vida sem HUN é terrível.
Desprovido das HUN o fígado endurece e nos
transforma em seres violentos, desagradáveis, grosseiros, incapazes de qualquer
tipo de relacionamento. Casamentos até então perfeitos se desfazem da noite
para o dia, amizades de anos são rompidas, perde-se o emprego e os vizinhos não
mais nos cumprimentam. Até os animais de estimação se afastam desgostosos. Um
horror! Para que as HUN retornem (e isto é possível) é necessário que passemos
a aceitar sem raiva ou animosidade todas as circunstâncias de vida e todos os
seres humanos! Caramba! Todos?!
Como é que eu vou conseguir sorrir diante das enchentes acontecidas em Friburgo, Teresópolis e pelo Brasil afora sabendo que
milhares de famílias perderam filhos, pais, seres que amavam; perderam suas
casas com tudo que dentro havia por incompetência e descaso de administradores,
ao longo dos anos? Como “aceitar” estes assassinos? Como não sentir raiva
quando vejo educação e saúde relegadas a uma não importância neste País? Como
ficar indiferente ao ler a nova versão proposta para o Código Florestal e
aceitar sorrindo o parecer de Aldo Rabelo? Isto seria bater palma para palhaço
dançar, atitude que depois que não mais frequento circos me recuso adotar.
Num âmbito muito menor, mas diário, como
sorrir para aquela mulher bruxa, que certamente já nasceu sem HUN, e que
transforma as reuniões de condomínio num pugilato profundamente desagradável? E
as torneiras que pingam? Tenho raiva, sim. Várias vezes por dia! E agora sei
que em razão disto estou prestes a ficar sem HUN. Digo prestes porque – creio –
ainda disponho de algumas que me fazem feliz quando estou com minhas netas,
meus filhos, meu irmão, meus amigos; quando olho para a mangueira tão linda,
imune às agressões que a urbanização lhe faz; quando os gatos Pandareco e Marta
me acordam passando muito de leve a patinha em meu rosto, miando
carinhosamente; quando leio um bom livro, quando escuto Satie; quando conheço
alguém interessante; quando penso que dentro de três meses serei bisavó; quando
ligo meu celular e leio, encantada, a mensagem permanente colocada por minha
neta adolescente: te amo Vovó Anna!
Quando o porteiro sorri e mente carinhoso: a
senhora está muito bonita hoje, D. Anna. Quando a amiga telefona só pra
dizer que está com saudade.
São tantas as benesses! Mas, ao que parece, insuficientes
para que as HUN permaneçam. Isto só aconteceria se eu jamais fosse possuída de
sentimentos menores. Não tem jeito, não! Portanto não se espantem se
gradativamente, correspondendo ao desaparecimento progressivo das HUN, estas crônicas
se tornarem amargas, agressivas e desagradáveis. Isto será resultante de um
fígado desabitado e endurecido. Mas não terão que me aturar por muito tempo:
desprovida de HUN vou ser demitida do Montbläat e, o que é pior, perdendo meus
queridos editores e grandes amigos Fritz e Liége.
Assim vaticina a Milenar Medicina Chinesa.
Entre as pessoas contra as quais sinto raiva está agora o amigo que me enviou
esta desgraça. Vai ver ele o fez na pior das intenções porque
também está sendo abandonado pelas HUN e, impiedoso, se vinga destruindo meu
bem estar. Juro que não é o que estou querendo fazer a vocês que me lêem.
Amparada pelas poucas HUN que ainda habitam meu já parcialmente desprecatado
fígado, desejo de coração (órgão que para mim agora decresceu em importância)
que consigam conservar para sempre a higidez e saúde de suas HUN.
2011
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