sexta-feira, dezembro 20, 2013

IDEIAS AFINS

Periodicamente me encontro refém de uma atividade que beira a esquizofrenia. Por vezes se passam anos sem que o mal se manifeste. Mas os sintomas iniciaram faz tempo, muito tempo. O primeiro deles é o medo de ser soterrada por uma avalanche de livros que desabarão das estantes repletas, muitos dos quais nunca mais serão lidos ou consultados. Inicia-se então uma triagem para separar aqueles que serão defenestrados para um sebo, liberando o espaço de que tanto careço. É um processo muito doloroso. Muito mesmo.

Semana passada o mal se manifestou quando literalmente caíram vários volumes da Larousse XXéme Siécle sobre minha cabeça. Vai daí que iniciei o processo mesmo sabendo que separadas as pilhas e ao ver os livros desoladamente pelo chão, todos voltarão a seus lugares adiando a venda ao sebo para um futuro distante e incerto. Eu falei que é um procedimento esquizofrênico, não falei?

O ritual consiste em examinar volume por volume, numa viagem ao passado, rememorando todas as circunstâncias da aquisição original: o prazer ou não que me deu a leitura, a história contada, o “achado” que foi encontrá-lo inesperadamente num sebo em que entrei por acaso, e que mais sei eu. É claro que isto significa dias de trabalho plenos de um enorme sofrimento que ocorre no momento em que todas as qualificações exigem que o volume seja movido para a pilha “sebo”.

Desta vez ocorreu um fato inusitado: de repente tenho nas mãos um livrinho assaz estranho. A sensação é de nunca ter tido dele conhecimento. Nada, mas nada mesmo me vinha à memória e era um mistério que sua existência não tivesse sido notada nas triagens precedentes. Bem velho, muito manuseado e com o estranho título de Dicionário de Idéias Afins! Imediatamente interrompo a triagem e me instalo numa poltrona, ao som de Satie, disposta a mergulhar num processo de associação de ideias, orientado e organizado. Bem que careço disto. Pulo sempre de uma ideia para outra sem o menor método e, quem sabe, a esta altura da vida, vou aprender a organizar o pensamento dentro de alguma lógica.

Tomo conhecimento do autor pela primeira vez: Hermínio Sargentim. O primeiro capítulo se anuncia instigante: Para que Serve o Dicionário de Idéias Afins? Segundo o autor é extremamente útil antes que se comece a escrever um texto, durante o processo da escrita e depois de ter escrito o rascunho. Isto porque se torna possível, através da pesquisa sobre o assunto sobre o qual se quer escrever, encontrar palavras referentes que melhor ou mais ricamente definiriam a ideia. Fornece um exemplo: se quer dizer que Maria é linda. A consulta à palavra beleza permite usar outras qualificações: Maria é elegante, graciosa, atraente, delicada. Ou ainda: Maria é um encanto, uma ninfa, uma deusa. E verbos: Maria encanta, fascina, seduz. Confesso que não me entusiasmei e achei um tanto pobre o resultado.

De qualquer modo, corro a procura da relação dos afins de “velhice”, estado no qual me encontro e sobre o qual volta e meia escrevo. Vai daí, quem sabe, me abre uma porta. E deu-se a tragédia: o senhor Hermínio tem um sério problema com esta ideia! Eis alguns “afins” de velhice: senilidade, o peso dos anos, inverno da vida, crepúsculo da vida, menopausa, envelhecer (um tanto óbvio, não?), estar com pé na cova, caducar, ir em decadência render-se aos anos, estar um caco, estar acabado, octogenário, aposentado, alquebrado, senil, caduco, abatido e, estranhamente, patriarcal. Ou o senhor Hermínio era muito jovem quando escreveu o opúsculo ou era um velho triste. Mas me parece que seria jovem mesmo.

Esta associação das palavras escolhidas como afins para velhice é comum nos jovens que a encaram como alguma coisa que nunca vai acontecer. Nunca entendi este estranho preconceito. Não que entenda ou aceite os demais. Longe disto acho qualquer tipo de preconceito uma imbecilidade. Mas a maioria têm pé numa lógica canhestra, mas ainda assim lógica. Por exemplo: um branco que tenha o absurdo preconceito contra negros não tem a menor possibilidade de se tornar um. E por ai vai em relação aos demais preconceitos. No caso de velhice é diferente: todos ficarão velhos a menos que morram antes que não me parece um bom negócio.

Mas voltando ao opúsculo: nele as palavras são apresentadas aos pares. Uma sempre com uma idéia contrária a outra. No caso de velhice a ideia contrária é “infância”. À parte do adjetivo “imberbe” que me parece um tanto fora do lugar e “desmamado” que jamais me ocorreria aplicar descritivamente a uma criança, os demais são todos laudatórios e agradáveis. Ou seja, velhice é uma droga e infância um paraíso. O autor afirma que o “Dicionário é tão útil que alguns autores o transformam em seu livro de cabeceira e na convivência com as palavras, o leitor ampliará seu universo vocabular e, certamente, adquirirá uma comunicação mais precisa”. Diz ainda que o Dicionário é um amigo do processo da escrita.

Peço desculpas ao Senhor Hermínio, mas jamais vou considerar meu amigo este seu livro. Minha cabeça mesmo errática é bem mais amiga. E pela primeira vez sem sofrimento vou colocar um livro na pilha do sebo. Nesta velhice em que me encontro adoro “primeiras vezes”. Pra que tanta amargura, Hermínio? E, para mostrar boa vontade utilizo sua obra para fornecer aos que me leem a possibilidade de substituir “amargura” por uma ideia afim sugerida pelo autor, tornando o texto mais preciso como por ele preconizado: azedume, impressão desagradável, jiló, repugnância, ânsia, fel, náusea, acrimônia, losna e enjoo. Quanto a mim vou continuar a associar minha velhice a idéias afins bem mais agradáveis e, como é de meu feitio, nada lógicas. É bem mais divertido, acreditem.

2010

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