domingo, dezembro 15, 2013

A ARTE DE FICAR

Custei um pouco a entender o que é “ficar”. Apesar dos esforços de minhas duas netas mais velhas em me esclarecer eu insistia que “ficar” era a mesma coisa que namoro “não muito sério” de minha juventude que já lá vai longe. Ledo engano. Não é. “Ficar” é uma experimentação. Pode ou não se transformar em namoro. Um acordo tácito de que não existe qualquer obrigação de ambas as partes e que estão os dois livres para tomar seu rumo (ou não) depois da duração delimitada pelo período fixado de comum acordo para “ficação”. Este pode ter a duração de uma festa, de um fim de semana, de uma manhã na praia, e por aí vai. Mas os que me leem provavelmente sabem disto. A ignorância era minha.

O que me faz falar nisto é a descoberta que faço de que “ficar” é coisa extremamente saudável e muito, mas muito, inteligente. É um agradável experimento que possibilita um conhecimento ainda que superficial evidenciando se vale a pena ou não investir em coisa mais séria. Segundo me informam mais das vezes não vale e não deixa traumas nem sofrimento. Apenas não rola.

E como o pensamento dá pinotes sem que se tenha muito controle sobre isto, me veio à cabeça que havia em priscas eras, uma absurda certeza de que dois bicudos não se beijam. Ou seja, de que a gente acabava dividindo a mesma barraca com um ser “complementar”. A tímida enlouquecia o desinibido e vice e versa e...  viveriam felizes para sempre.  Que a atração exista, até por curiosidade, em conhecer alguém que é completamente estranho é compreensível. E é instigante. Mas este conhecimento, vejo hoje, é para uso externo. Ou seja, para o “ficar” que torna possível esta aventura emocionante do encontro do bicudo com o não bicudo sem que deixe conseqüências. No namoro as diferenças já começam a criar problemas. As concessões a que ficam obrigados os bicudos e os que não tem bico aparecem dificultando tudo e impedindo a curtição a dois.

Tenho cá pra mim que dois bicudos ou dois sem bico levam mais chance de acertar. Meu genro, psicanalista, diz que se as pessoas prestassem atenção aos ditados populares, seguindo-os como máxima de vida, ele não teria trabalho. Achei interessante quando me disse. Mas ele está errado. Pelo menos quanto ao ditado dos bicudos. Dois bicudos se beijam, sim. E mais que isto devem fazê-lo tornando a vida muito mais bonita e a agradável. Mas para isto não se deve abrir mão, numa primeira etapa do “ficar”. Ai, sim, bicudos e não bicudos podem se curtir, achando a maior graça na existência dos bicos ou da ausência deles.

Sei lá eu porque me veio a cabeça o assistir de uma ópera. Adoro música. Na verdade qualquer uma, embora Bach e Satie me levem ao delírio muito acima de qualquer outras. Mas existe uma exceção: ouvi-la na montagem de uma ópera. Não as consigo assistir sem fazer inúmeros reparos. Sei que isto vai horrorizar uma grande parte dos leitores, senão todos. Mas fazer o que? É assim comigo. Provavelmente trata-se de um trauma. Meu pai levava-me, a partir dos nove anos, a tudo que acontecia no Teatro Municipal. Minha primeira experiência com ópera foi La Bohème e eu achei de um ridículo atroz aquela mulher enorme de gorda, cantando em plenos pulmões ao agonizar tuberculosa. O desempenho dos cantores como atores era terrível e me impedia de curtir a música. E seguiu sendo em todas as demais óperas. Só as consigo ouvir em discos.

Fico imaginando a possibilidade de ter me ligado a alguém para quem ir à ópera fosse um “must”.  Teria sido um terror. Igual terror ele teria se não gostasse de Bach o que me levaria a escutá-lo somente quando ele fosse à ópera. Sozinho! A isto se chama concessões que tornam vida bem sem graça. Dois bicudos iriam juntos à ópera ou juntos ouviriam Bach tirando disto um enorme prazer. Sempre com a matemática como pano de fundo me vem à ideia de que uma união de duas pessoas deveria ser uma intercessão de dois conjuntos quase idênticos. Os elementos não comuns aos dois deveriam ser poucos e não incomodativos. Quanto mais elementos comuns mais chance de grandes prazeres.

Já no “ficar” os conjuntos podem ter uma mínima intercessão com elementos completamente díspares de cada lado. E pode ser fascinante um tomar conhecimento dos elementos desconhecidos que o outro tem.  Vendo de longe, né?   Sem que venha a vontade de trazê-los para dentro do próprio conjunto. Um grande amigo que já se foi, era enlouquecido por ópera. Eu podia ouvi-lo falar horas sobre as que havia assistido. Eram fascinantes o entusiasmo e o encantamento. Mas o que me dava maior prazer era o relato que fazia. Não o objeto em si. Era um mundo que eu não queria para mim, mas o fascínio que tinha para ele era instigante. Pela duração do relato estávamos “ficando” no prazer de comentar alguma coisa a que não seriamos obrigados a dar prosseguimento por uma ação de, no meu caso, ir àquela ópera que estava sendo descrita.

Raramente tenho a sensação de que perdi alguma coisa por não ter nascido bem depois. Mas o “ficar” está me causando isto. Era inimaginável há cinqüenta anos. Seria execrado por pais, mães como um comportamento pra lá de censurável. Que pena!

2006

Nenhum comentário:

Postar um comentário