Custei
um pouco a entender o que é “ficar”. Apesar dos esforços de minhas duas netas
mais velhas em me esclarecer eu insistia que “ficar” era a mesma coisa que namoro “não muito sério” de minha juventude que já lá vai longe. Ledo engano.
Não é. “Ficar” é uma experimentação. Pode ou não se transformar em namoro. Um
acordo tácito de que não existe qualquer obrigação de ambas as partes e que
estão os dois livres para tomar seu rumo (ou não) depois da duração delimitada
pelo período fixado de comum acordo para “ficação”. Este pode ter a duração de
uma festa, de um fim de semana, de uma manhã na praia, e por aí vai. Mas os que
me leem provavelmente sabem disto. A ignorância era minha.
O
que me faz falar nisto é a descoberta que faço de que “ficar” é coisa extremamente
saudável e muito, mas muito, inteligente. É um agradável experimento que
possibilita um conhecimento ainda que superficial evidenciando se vale a pena
ou não investir em coisa mais séria. Segundo me informam mais das vezes não
vale e não deixa traumas nem sofrimento. Apenas não rola.
E
como o pensamento dá pinotes sem que se tenha muito controle sobre isto, me
veio à cabeça que havia em priscas eras, uma absurda certeza de que dois
bicudos não se beijam. Ou seja, de que a gente acabava dividindo a mesma
barraca com um ser “complementar”. A tímida enlouquecia o desinibido e vice e
versa e... viveriam felizes para
sempre. Que a atração exista, até por
curiosidade, em conhecer alguém que é completamente estranho é compreensível. E
é instigante. Mas este conhecimento, vejo hoje, é para uso externo. Ou seja,
para o “ficar” que torna possível esta aventura emocionante do encontro do
bicudo com o não bicudo sem que deixe conseqüências. No namoro as diferenças já
começam a criar problemas. As concessões a que ficam obrigados os bicudos e os
que não tem bico aparecem dificultando tudo e impedindo a curtição a dois.
Tenho
cá pra mim que dois bicudos ou dois sem bico levam mais chance de acertar. Meu
genro, psicanalista, diz que se as pessoas prestassem atenção aos ditados
populares, seguindo-os como máxima de vida, ele não teria trabalho. Achei
interessante quando me disse. Mas ele está errado. Pelo menos quanto ao ditado
dos bicudos. Dois bicudos se beijam, sim. E mais que isto devem fazê-lo
tornando a vida muito mais bonita e a agradável. Mas para isto não se deve
abrir mão, numa primeira etapa do “ficar”. Ai, sim, bicudos e não bicudos podem
se curtir, achando a maior graça na existência dos bicos ou da ausência deles.
Sei
lá eu porque me veio a cabeça o assistir de uma ópera. Adoro música. Na verdade
qualquer uma, embora Bach e Satie me levem ao delírio muito acima de qualquer
outras. Mas existe uma exceção: ouvi-la na montagem de uma ópera. Não as
consigo assistir sem fazer inúmeros reparos. Sei que isto vai horrorizar uma
grande parte dos leitores, senão todos. Mas fazer o que? É assim comigo.
Provavelmente trata-se de um trauma. Meu pai levava-me, a partir dos nove anos,
a tudo que acontecia no Teatro Municipal. Minha primeira experiência com ópera foi
La Bohème e eu achei de um ridículo atroz aquela mulher enorme de gorda,
cantando em plenos pulmões ao agonizar tuberculosa. O desempenho dos cantores
como atores era terrível e me impedia de curtir a música. E seguiu sendo em
todas as demais óperas. Só as consigo ouvir em discos.
Fico
imaginando a possibilidade de ter me ligado a alguém para quem ir à ópera fosse
um “must”. Teria sido um terror. Igual
terror ele teria se não gostasse de Bach o que me levaria a escutá-lo somente
quando ele fosse à ópera. Sozinho! A isto se chama concessões que tornam vida
bem sem graça. Dois bicudos iriam juntos à ópera ou juntos ouviriam Bach
tirando disto um enorme prazer. Sempre com a matemática como pano de fundo me
vem à ideia de que uma união de duas pessoas deveria ser uma intercessão de
dois conjuntos quase idênticos. Os elementos não comuns aos dois deveriam ser
poucos e não incomodativos. Quanto mais elementos comuns mais chance de grandes
prazeres.
Já
no “ficar” os conjuntos podem ter uma mínima intercessão com elementos
completamente díspares de cada lado. E pode ser fascinante um tomar
conhecimento dos elementos desconhecidos que o outro tem. Vendo de longe, né? Sem que venha a vontade de trazê-los para
dentro do próprio conjunto. Um grande amigo que já se foi, era enlouquecido por
ópera. Eu podia ouvi-lo falar horas sobre as que havia assistido. Eram
fascinantes o entusiasmo e o encantamento. Mas o que me dava maior prazer era o
relato que fazia. Não o objeto em si. Era um mundo que eu não queria para mim,
mas o fascínio que tinha para ele era instigante. Pela duração do relato
estávamos “ficando” no prazer de comentar alguma coisa a que não seriamos
obrigados a dar prosseguimento por uma ação de, no meu caso, ir àquela ópera
que estava sendo descrita.
Raramente
tenho a sensação de que perdi alguma coisa por não ter nascido bem depois. Mas
o “ficar” está me causando isto. Era inimaginável há cinqüenta anos. Seria
execrado por pais, mães como um comportamento pra lá de censurável. Que pena!
2006
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