segunda-feira, dezembro 09, 2013

COMPAIXÃO TEM LIMITES

Dois dos personagens desta história já não se encontram entre nós. Vai daí que sem a permissão deles é indelicado revelar suas identidade bastando informar que eram ambos pessoas de muito destaque no meio teatral. A origem nordestina era o único aspecto coincidente nestas duas personalidades. No mais eram diferentes em tudo: um irônico, mordaz, emérito contador de histórias e se tinha em alta conta; o outro triste, deprimido, muito calado e infeliz. O terceiro, não conheci. Dele sei apenas o que me foi contado: negro, pobre e cego de nascença. A amizade entre os três datava da infância passada no interior do nordeste.
Na infância cursavam o mesmo grupo escolar e jogavam futebol. É. O CEGUINHO (assim era apelidado) jogava futebol! Assim me contou um deles e estou apenas repetindo o que ouvi. Os dois videntes na adolescência e por motivos diversos, vieram morar no Rio de Janeiro onde se tornaram pessoas notórias e notáveis. CEGUINHO por lá ficou, na sua pobreza e na sua cegueira. Eis que um dia o personagem doravante denominado INFELIZ telefona para o também doravante denominado ALTA CONTA e desolado informa que Ceguinho estava no Rio, mais precisamente no Instituto Benjamim Constant.

Condoído com a sorte do desgraçado amigo cego INFELIZ convoca ALTA CONTA para uma imediata visita: pobre, desnutrido, triste e abandonado pela sorte Ceguinho devia estar se sentindo péssimo, sem conhecer ninguém, sem instrução, sem calor humano, sem dinheiro, sem saúde e a estas desgraças seguia-se uma ladainhas de “sem” para descrever o calvário pelo qual devia estar passando. E lá se foram os dois. No caminho e enquanto esperavam na sala de recepção INFELIZ continuava a descrever o horror a que devia estar sendo submetido CEGUINHO. Solidário fazia planos de vez por outra levá-lo a sua casa onde leria para ele. É isto. Ouvir uma leitura era tudo que ele poderia usufruir desta cidade maravilhosa e mesmo da vida.

E eis que com uma espantosa desenvoltura chega à recepção um atlético e lindo rapaz negro que ostentando um sorriso radioso gritava: onde vocês estão? Venha cá este abraço. ALTA CONTA e CEGUINHO caem nos braços um do outro enquanto INTELIZ, em estado de choque, não acredita no que vê. Compara sua triste figura com do atlético rapaz e sai perdendo: um Adonis negro. E, ainda por cima, transbordante de alegria. Sentam os três em torno de uma mesa no jardim para conversar. INFELIZ tenta encontrar respaldo para a compaixão que necessitava demonstrar ao amigo: você deve estar se sentindo muito só, não é?  O coração dá um pinote com a resposta entusiasmada: coisa nenhuma. Nunca conheci tanta gente legal. Hoje tive que desmarcar três compromissos para estar com vocês.

ALTA CONTA e CEGUINHO engatam numa conversa animada sobre amigos comuns no Piauí e novos amigos no Rio. INFELIZ permanece calado cada vez mais desolado. Afasta-se um pouco vagando pelo jardim, ensimesmado, mas não o bastante para deixar de escutar o diálogo dos dois outros. CEGUINHO preocupa-se: o que há com ele? Parece tão mal, coitado. ALTA CONTA dá uma resposta evasiva já que não achou bom alvitre informar que INFELIZ estava muito, muito decepcionado com a boa disposição de CEGUINHO. Havia se preparado para um drama no qual faria o papel de carpideira. Encontrar aquele entusiasmo era mortal. Ofendia mesmo.

INFELIZ respira fundo e retorna à mesa atacando, já um tanto irritado, com: você está não está querendo nos preocupar, mas a verdade é que deve estar muito mal. A resposta de CEGUINHO foi terrível: preocupado estou eu com você, amigo. O que está havendo? Por que você está tão pra baixo? Aquilo era demais para INFELIZ. O papel da vítima sofredora era do CEGUINHO! Não dele. Raiva invade todo seu ser já não mais compassivo. CEGUINHO incauto, continua: que é isto? A vida é bela. INFELIZ dá um berro: Bela! Como é que é bela, imbecil! Você é cego!  Quando se recobra do espanto CEGUINHO abraça o amigo: você não está bem, irmão. Não está nada bem. INFELIZ descontrolado vocifera: você é cego, não ouviu? O outro retruca bem humorado: você só descobriu isto agora? Sou cego desde que nasci! Tá maluco?

ALTA CONTA divertido apenas observa, guardando todos os detalhes para depois poder divulgar a meio mundo este diálogo extraordinário. Não há papel para ele nesta cena incrível.  INFELIZ urra: maluco está você! Você não vê o mar! Já viu o mar? Sabe que cor é? Você sabe o que é cor? Você não vê o céu! Você não vê o Pão de Açúcar! Você não vê o Cristo! Você não vê nada! Você é um cego desgraçado! CEGUINHO fica consternado e confidencia a ALTA CONTA: pobre amigo. Está muito mal. Desde quando está assim? Ele tem que se tratar.  Foi a gota d’água: INFELIZ enfurecido avança contra CEGUINHO e é contido por ALTA CONTA que tem a maior dificuldade em levá-lo para casa onde ele se refugia em desespero.

ALTA CONTA telefona para CEGUINHO à noite e os dois lamentam a situação de INFELIZ. CEGUINHO promete que vai se ocupar do amigo tirando-o do inferno em que vive. ALTA CONTA maldosamente dá força: é. Faça isto, ele precisa de alguém que lhe dê ânimo. Você é a pessoa ideal. E diverte-se por antecipação ao imaginar a tragédia que iria ocorrer nos próximos encontros.
2010


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