A
palavra não existe! Mas o fato existiu e dele fui personagem. Melhor dizendo,
fui vítima. Pior ainda, vítima humilhada por ter sido a facilitadora de meu
castigo! A protagonista principal do ocorrido foi minha babá – Leonídia – que foi também babá de meus
filhos. Teria sido também babá de minhas netas caso houvéssemos permitido.
Quando do nascimento da primeira delas, Babá aprontou-se toda de uniforme
branco e esperou pela chegada do bebê em casa, instalada numa poltrona do quarto,
pronta para assumir as funções. O não termos permitido isto provocou uma
discussão de dias e foi mais uma vez motivo para mais um dos episódios que vou
relatar.
Mas
vamos aos fatos: até o nascimento de meus filhos eu era o sal da terra para
Babá. Perfeita, sem qualquer jaça, eu brilhava. Nascido o meu primeiro filho
este brilho diminuiu. Embora eu ainda conservasse algum prestígio, meu irmão,
que não tinha filhos, tomou-me a dianteira. É claro que de maneira inferior ao
bebê que lhe foi entregue. “Não foi assim que eu te criei” tornou-se um bordão
que eu escutava a cada ação maternal. Tolerante eu fingia que não escutava o
que mais das vezes era apenas resmungado.
Assim
fomos vivendo até que nasceu meu terceiro filho. Sabe-se lá porque este se tornou
imediatamente o centro do mundo para Babá. Todos nós outros fomos relegados a
uma importância bem menor e sempre que citados era numa comparação com o recém
aparecido, onde sempre levávamos a pior.
Babá
não sabia, nem queria, ler e escrever. Foram inúteis nossos esforços. Todos
tentamos. Até as crianças. Ela se irritava e desistia dizendo que não lhe fazia
a menor falta. Mas era extraordinário e até misterioso o seu saber das coisas.
Onde as aprendia nunca descobrimos. Mas era muitíssimo bem informada.
Quando
começou a “babazar” o meu mais moço já era bem entrada em anos e eu tive que
dar nó em pingo d’água para que não percebesse que a “babazisse” era apenas
simbólica e que eu delegava a outros ou assumia, quando não em horário de
trabalho, tudo que pusesse significar um esforço para ela. Um dia pediu-me a
levasse a um tabelião para fazer um testamento. Queria registrar aqueles que
seriam favorecidos com os poucos haveres e objetos que havia acumulado durante
anos a serviço da família (ela havia ingressado em casa de minha avó quando
minha mãe tinha doze anos!). Tentei demovê-la dizendo que era só ela me ditar e
eu escreveria num papel e todos garantiríamos que seu desejo seria cumprido. De
nada adiantou e lá fomos nós ao tabelião.
Não
foi uma empreitada fácil. A cada vez que pensamos estar terminado ela pedia que
o tabelião relesse em voz alta e trocava objetos e agraciados. Foi assim que me
tornei herdeira de um oratório lindo de madeira e cristal onde ela guardava
imagens dos santos de sua devoção e santinhos da primeira comunhão de toda
família. Eu amava aquele oratório, meu encanto desde muito pequena quando ela
deixava que eu abrisse a porta de cristal e ajudando a limpar os santinhos. Mas
foi aí que começou a tragédia.
Ela
ainda estava “babazando” o meu caçula quando eu tive a audácia (palavras dela)
de castigá-lo por uma das muitas artes que aprontava. Deixou imediatamente de
me dirigir a palavra e eu fui informada (por minha mãe) que ela exigia que eu a
levasse novamente ao tabelião para modificar o testamento. Em minha santa
inocência pensei que se o fizesse voltaríamos às boas. Não estava positivamente
preparada para o que sucedeu diante do divertido tabelião: fui deserdada e
pior, o motivo era declarado no testamento: “não vai mais ganhar porque ela não é mãe. É madrasta!”.
O
injustiçado rebento passou a ser o herdeiro do oratório com a recomendação de
que deveria utilizá-lo para rezar por minha alma quando me fosse já que
provavelmente eu estaria destinada ao inferno! Para meu horror e gargalhadas do tabelião
isto foi devidamente registrado. Vim para casa furiosa e no carro disse a ela
que nunca mais me pedisse para modificar testamento algum e que se nunca mais
quisesse falar comigo tudo bem, eu nem me importava. Dura, olhando para frente
não se deu ao trabalho de responder.
Tempos
depois era visível que não poderia nem mais fingir que “babazava” ficou
muitíssimo bem instalada num dos quartos do apartamento de minha mãe e onde
reinava o anjo da guarda de mamãe – Alzira – sua sobrinha e que era uma
fantástica cozinheira desde os meus doze anos. Antes disso já havíamos feito as
pazes e eu já havia com ela retornado ao tabelião para de novo me ver agraciada
com o oratório. Mas infelizmente volta e meia ficava ela sabendo de medidas
corretivas dadas ao seu preferido, informada que era pelo próprio, que delas
fazia relatos exagerados a cada ida à casa da avó.
E
até o dia em que ela se foi repetimos por muitas vezes a vergonhosa ida ao
tabelião. Felizmente quando partiu estávamos “de bem”. E hoje com o oratório,
ao lado de minha cama, eu a sinto zelando pelo meu sono como o fez
encantadoramente por todos os dias de minha dourada infância.
Que
me perdoem os santos que nele ainda habitam por respeito à Babá, já que neles
não acredito. Ao invés deles a única visão mansa que me vem antes do sono de
todas as noites é o rosto de Babá me dizendo: dorme com os anjos, minha
nega.
2006
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