Meus tios e tias maternos eram extraordinariamente fora de
esquadro. Especiais mesmo. Só me dei conta disto depois que passei a frequentar
casas de colegas. Antes achava que todas as famílias eram como a minha. Não
eram. Nós crianças formávamos três grupos: quatro mais velhos, do qual eu fazia
parte; dois do meio, um deles meu irmão; e uma linda e encantadora menininha
vinda muito depois de nós.
Nas grandes férias de verão, no sítio, perdíamos
completamente a noção de quem eram os nossos pais, já que todos agiam como se o
fossem nos acarinhando, orientando, castigando, premiando e, sobretudo,
ensinando e exigindo o perfeito desempenho das mais variadas atividades de
acordo com as prioridades de cada um deles. E foi assim que desde muito pequena
eu tinha como obrigação jogar xadrez, poquer e bridge; amar e cuidar de cavalos
e cachorros grandes; entender de árvores e plantas de toda espécie; caçar tatu
na mata; tirar berne dos animais; soprar um pio de nambu; ler compulsivamente;
encantar-me com livros de arte e com aqueles capazes de produzi-la; conhecer
compositores e suas obras; revoltar-me com a ditadura; saber cantar a
Marselhesa; e, sobretudo me deliciar com conversas e discussões acaloradas
sobre os mais variados assuntos (não os havia proibidos para crianças!) quando
ninguém concordava com ninguém.
Os colos adultos eram ocupados por nós crianças
aleatoriamente, depois do jantar: o mais perto ou o vago era o critério da
escolha que fazíamos para garantir a vinda do sono embalado pelas deliciosas
conversas. E quando este vinha tínhamos a certeza de que o dono do colo
providenciaria o pijama, o puxar das cobertas e beijo de boa noite. Tudo aquilo
nos dava uma enorme sensação de segurança e paz.
O dia-a-dia era pleno de incidentes, que só muito depois percebi
absurdos. Muitos deles deixaram como marca frases que se tornaram bordões
através dos tempos. Foi assim com o incidente “sumiço do dentista” objeto desta
crônica. Os adultos, uma vez por semana empenhavam-se numa espécie de torneio
de cartas. Era este jogo, provavelmente, um antepassado do buraco e, se bem me
lembro, chamava-se Cuncam Play. Para este torneio o único convidado externo era
o dentista local. Nestas noites os colos
de não jogadores eram insuficientes para todos. Vai daí que alguns de nós,
privados deste refugio, ficávamos “corujando” o jogo que se constituía num
pugilato apaixonado e ruidoso. O mais entusiasmado e enfático era o Tio Pediatra: não admitia derrota. Para um espectador desavisado as relações entre
os contendores jamais seriam as mesmas após o jogo, tais as ameaças e acusações
trocadas.
Pois bem, um dia o dentista não apareceu no dia e hora
aprazados. Não havia telefone (nem mesmo luz elétrica) e somente no dia
seguinte, se alguém se dispusesse a ir à vila, seria possível saber-se o motivo
de tão grave ausência. Esta ida só aconteceu dias depois, já na véspera do
próximo embate. Uma de minhas tias (a Tia das Plantas) foi procurar umas mudas
de espirradeira e fez uma extraordinária comunicação: havia visto o dentista
conduzindo uma charrete e para ele se dirigiu em busca de explicação para
ausência não justificada. Pois bem: homenzinho dela se afastou, ostensivamente
virando-lhe as costas, fustigando o cavalo como que fugindo do demônio!
A notícia provocou espanto e revolta. Que explicação poderia
haver para tão absurdo comportamento?! Durante dias este foi o assunto das mais
acaloradas discussões. Procurou-se em vão alguma razão reconstituindo-se todas
as manifestações havidas quando do último comparecimento do já agora réu de um
crime indesculpável. E nada, nada mesmo,
foi encontrado que pudesse justificar este comportamento grosseiro e descabido.
O mais veemente nas censuras era, como sempre, o Tio Pediatra
e ele vociferava: é injustificável o
ocorrido considerando-se a gentileza com que sempre o tratamos! Uma explicação
se impõe! Exijo uma retratação!
Todos concordaram e foi resolvido que um dos tios (o Tio Cavaleiro) iria à casa
do criminoso para interpelá-lo. Resolvido isto a conversa mais uma vez
voltou-se para especulações sobre a explicação para o grave delito. Eis que de
repente o Tio Pediatra, com uma expressão vitoriosa que denunciava haver
deslindado o mistério, faz uma revelação extraordinária que parecia lhe causar
enorme espanto: só se foi por causa da
cartinha que escrevi a ele... mandei entregar em mãos.
Diante do estupor de todos informou que no último jogo havia
desconfiado que o dentista houvesse escamoteando um ás. Por delicadeza e para
não deixá-lo constrangido frente a todos, havia mandado o empregado entregar-lhe
uma carta na qual o acusava de ladrão, salafrário, desonesto e indigno de
conviver com pessoas de bem. E termina o relato, surpreso: só se foi mesmo aquela cartinha... homenzinho esquisito este! E até
hoje nossos netos, quando não conseguem explicar o comportamento inexplicável
de alguém, dizem: vai ver recebeu uma cartinha!
2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário