Existem na vida de todo mundo episódios que se gostaria ver
esquecidos para sempre, não é? Assim como se nunca tivessem ocorrido. No meu
caso é o conjunto da obra da “serial clumsy” que desgraçadamente sou. Mas
alguma coisa conspira para que estes ressurjam, resgatados do passado, das
formas mais inesperadas. Desta vez devo o ressurgimento a angustiada leitura de
uma revista enquanto aguardava o atendimento do dentista!
Ao que parece dizem os chineses que por trás de um cachimbo
existe sempre o rosto de uma pessoa sensível. A palavra cachimbo até hoje me dá
um frio na espinha. Fui casada com um! E ao cenário e qualificações atribuídas
ao fumante, descritas na revista, no meu caso, somavam-se: cachecol, cognac
Remi Martin e um cão perdigueiro distraidamente afagado, deitado sobre o tapete
em frente à lareira!!! A coleção destes artefatos merecia muito mais cuidados
do que eu e era guardada numa estante própria. O uso de cada um deles obedecia
a um rodízio, cuja lógica nunca consegui entender. Os fumos embora adquiridos
prontos para uso eram submetidos a mixagem com requintes de procedimentos
laboratoriais em que entravam, ocasionalmente, o já mencionado cognac Remi
Martin e outras especiarias. Uma caixa de madeira requintadíssima guardava o
material de limpeza realizada com gestos que seriam totalmente adequados a um
culto religioso.
E o cheiro?! Algo me diz que, mesmo anos passados, eu deveria
me referir a perfume e não a cheiro. Tudo bem, perfume, então. Este competia
com uma enorme vantagem com os melhores franceses com os quais eu tentava
neutralizar as emanações que infestavam toda casa. E eu dava nó em pingo d’água
para comprar aqueles perfumes porque, não sendo eu a cachimbeira, nem era
abastada e nem mesmo parecia ser.
Pois bem, entre as preciosidades colecionadas encontrava-se
um “pipe d’écume”. Para os não iniciados informo que se trata de uma coisa
fabricada... (algo me diz que eu não deveria atribuir-lhe o "coisa" e muito menos "fabricada!). Pois então. o "objeto" era "esculpido" em magnesita e espuma do mar comprimida
e, segundo me era explicado à exaustão, deveria ser manipulada com extrema
delicadeza dada sua fragilidade. Não me lembro a nacionalidade. Vagamente
atribuo à Turquia sua origem. Havia sido
presenteado a meu marido por um casal de franceses, também iniciados, em
retribuição a um pacote de goiabada cascão e um queijo de minas com que os
havíamos agraciado. Embora possa parecer uma retribuição desproporcional em
valor, informo que o tal casal havia se deliciado com o presente e nos informou
ter sido esta a sobremesa servida em um jantar formal para encanto dos
convidados! Mas isto é outra história em que também ocorreu outro episódio
serial.
Voltando a “pipe d’écume”: eu a quebrei! O raio da coisa
era frágil mesmo. Fui mostrá-la como raridade a uma visita e ele adquirindo
vida própria, deu um pinote e suicidou-se por espatifamento no chão. Não tenho
certeza se foi Araldite a cola que havia recém aparecido no mercado, capaz de
colar o que quer que fosse. Mas era uma nova, com certeza. Parti em disparada
para cidade (morávamos na Escola de Aeronáutica fora dos limites da cidade, em
Pirassununga) e voltei com a bendita cola. A operação colagem provocou choros e
ranger de dentes. Tudo colava, menos o raio do cachimbo: meus dedos no cigarro,
o cabelo no cinzeiro, o pincel no pires, o pires na mesa e que mais sei eu. O
tempo corria célere e dentro de algumas horas o dono estaria de volta e eu
temia por minha vida. Finalmente consegui fazer a coisa retornar a sua forma
original. Pensava eu...
Era uma quinta feira. No sábado deveria ocorrer a inspeção de
alguns, a limpeza de outros, o admirar do tesouro como um todo. Eu estava
salva. Até lá o negócio estaria mais que seco. No sábado eu prudentemente
resolvi ir ao mercado no momento em que começou a cerimônia. Isto me permitiria
esconder o ar de culpa que sempre se revela em meu rosto quando apronto alguma. Quando
voltasse tudo já estaria bem. Ledo engano. Ao transportar os primeiros sacos de
papel para cozinha (ainda não existiam sacolas) me deparo com um gigante de
metros de altura, mudo, feroz e ameaçador com o “pipe d’écume” apontada
acusadoramente em minha direção como uma arma letal.
Eu não havia me dado conta de uma verdade: amor é um negócio
sério. Qualquer modificação, por mínima que seja no objeto amado é percebida a
um simples e rápido passar de olhos. E ele amava aquele cachimbo à loucura. O
silêncio, a expressão de dor e de horror eram mais contundentes do que
imprecações. Num sussurro vindo do fundo da alma, o lamento e o reconhecimento
de meu crime vieram em francês, como sempre ocorria nos momentos de grande
tensão em que a língua materna era a única capaz de corresponder à emoção: cela a depassé les bornes! Nunca fui perdoada! Por esta razão discordo
dos chineses e afirmo que por trás de todo cachimbo existe um rosto de
assassino em potencial. Sobretudo se este cachimbo for um “pipe d’écume”.
2007
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