Costumam
ser coletivos, não é? Pois este de que vos falo não foi. Vendo daqui, do agora,
pode parecer estranho que uma recém adolescente tenha curtido, e muito, passar
o reveillon sozinha, num lugar que lhe era desconhecido tendo por vizinhas
pessoas que também não lhe eram familiares. Por que nada era familiar naquela
Base Aérea de Natal, no ano de 1949. Militares não existiam em minha família.
Minha extraordinária avó só considerava como profissões possíveis as de médico,
engenheiro e advogado (nesta ordem). Condescendente, tolerava duas outras desde
que não exercidas no âmbito da família: padre (para ela uma profissão) e
militar. Felizmente a notícia de que eu iria me casar com um oficial da
aeronáutica provocou apenas um franzir de testa porque a dupla nacionalidade do
noivo (francesa e brasileira), o ser um exímio cavaleiro, o ter lido Anatole
France, o saber das Madeleines de Proust tornaram a pílula palatável.
Vai
daí que recém casada, parto eu para o Nordeste. A inexistência de casa para
segundo tenentes (só existiam para oficiais mais graduados) fez com que o bando
de recém casados adaptasse uns barracões deixados pela ocupação americana
transformando-os em pequenas casas. Morávamos na Base, em Parnamirim. Eu era
olhada com certa desconfiança pelas outras recém casadas. Essas moças eram em
sua grande maioria oriunda de bairros do Rio de Janeiro, vizinhos à Escola de
Aeronáutica, e neles ainda não se via com bons olhos o usar de maiô de duas
peças (o biquíni veio milênios depois) e fumar. E eu cometia as duas
impropriedades.
Dias
depois do Natal meu marido foi designado para ir buscar um avião (um B-25. Famoso
pela proeza de ter bombardeado Tókio na segunda guerra) no Campo de Marte, em
São Paulo devendo estar de volta no dia 30 de dezembro. Corriam soltos na Base
os preparativos para a festa do reveillon que iria ocorrer no cassino de
oficiais. As senhoras mais graduadas comandavam as menos na produção do evento
ao qual seria obrigatório comparecer. E eis que no dia 30 sou comunicada de que
alguma coisa havia impedido o retorno de meu marido que este só iria se dar no
dia 2 de janeiro e que um casal havia sido designado para me acompanhar a tal
festa.
À decepção causada pela não chegada do marido
foi suplantada pelo espanto que me invadiu por ter que ser “acompanhada”. O
cassino ficava a poucos metros do lago que por sua vez ficava a poucos metros
de minha casa. De qualquer modo agradeci e informei que não havia necessidade de
escolta já que eu poderia ir sozinha. O espanto com esta insubordinação
transferiu-se para o rosto do portador da notícia, já muito traumatizado pelo
meu convite para entrar para um café, visivelmente considerado da maior
inconveniência embora fosse de se esperar de alguém que usava duas peças e
fumava.
O
dia 31 amanheceu lindo sonorizado pela alegre debandada de moças que se
dirigiam à cidade em busca de um salão de cabeleireiros. Arriscando comparecer
à festa totalmente desgrenhada resolvi ir a Praia de Ponta Negra, naquela
época, um deserto de gentes e um esplendor de beleza selvagem. Sei lá por
quanto tempo me deixei ficar entre água e areia, às vezes imóvel, às vezes
subindo e descendo as dunas. Voltei para casa já o sol se pondo, morta de fome
e de preguiça. Uma combinação que levou inevitavelmente a sanduíches devorados
ao som de Orlando Silva na composição de Agustín Lara deblaterando contra a
Pecadora. Vai ver eu estava me sentindo uma por não estar empenhada como
deveria nos preparativos para comparecer a tal festa. Naquele momento ainda era
certa a minha ida. Pelo menos eu pensava assim.
Horas
depois, já pronta, apresentando um razoável arranjo capilar, fechei a porta da
casa atrás de mim. O carro, um Fiat pulga, estava estacionado em frente e dele
só estava separada pela varanda que eu havia cercado de treliças tornando minha
casa bem diferente das demais. Neste momento fui invadida por uma sensação de
liberdade como poucas vezes tive em minha vida e me dei conta de que não queria
ir. A única companhia que me atraia naquela noite tão linda era a minha.
Deitei-me na rede escutando o som dos muitos carros que partiam demandando o
cassino. E, de repente, o silêncio.
Através
da treliça olhei o céu coberto das estrelas que um dia reparti com meus primos
no gramado do sítio. Não consegui mais reconhecer as minhas estrelas da
infância. Na verdade o único reconhecimento que estava ocorrendo era o de mim
mesma. Num alumbramento me dei conta de que tudo em volta poderia mudar e
certamente mudaria. Eu não pertencia aquele lugar, pertencia a mim mesma e só a
mim. Estivesse onde estivesse nos reveillons que viriam esta era a única
certeza. Seria maravilhoso, é claro, estar com as pessoas de quem gostava e que
gostavam de mim. Mas nem sempre estariam presentes. Mas eu sim, sempre estaria
comigo.
E
veio aquela sensação pra lá de boa de que eu curtia minha companhia. Seria
terrível se assim não fosse. E o óbvio revelou-se numa simples e extraordinária
constatação: aconteça o que acontecer sou e serei sempre a única pessoa em todo
mundo com quem vou conviver todos os anos, meses, dias, horas, minutos e
segundos de minha vida.
2006
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