segunda-feira, dezembro 16, 2013

REVEILLON INDIVIDUAL

Costumam ser coletivos, não é? Pois este de que vos falo não foi. Vendo daqui, do agora, pode parecer estranho que uma recém adolescente tenha curtido, e muito, passar o reveillon sozinha, num lugar que lhe era desconhecido tendo por vizinhas pessoas que também não lhe eram familiares. Por que nada era familiar naquela Base Aérea de Natal, no ano de 1949. Militares não existiam em minha família. Minha extraordinária avó só considerava como profissões possíveis as de médico, engenheiro e advogado (nesta ordem). Condescendente, tolerava duas outras desde que não exercidas no âmbito da família: padre (para ela uma profissão) e militar. Felizmente a notícia de que eu iria me casar com um oficial da aeronáutica provocou apenas um franzir de testa porque a dupla nacionalidade do noivo (francesa e brasileira), o ser um exímio cavaleiro, o ter lido Anatole France, o saber das Madeleines de Proust tornaram a pílula palatável.

Vai daí que recém casada, parto eu para o Nordeste. A inexistência de casa para segundo tenentes (só existiam para oficiais mais graduados) fez com que o bando de recém casados adaptasse uns barracões deixados pela ocupação americana transformando-os em pequenas casas. Morávamos na Base, em Parnamirim. Eu era olhada com certa desconfiança pelas outras recém casadas. Essas moças eram em sua grande maioria oriunda de bairros do Rio de Janeiro, vizinhos à Escola de Aeronáutica, e neles ainda não se via com bons olhos o usar de maiô de duas peças (o biquíni veio milênios depois) e fumar. E eu cometia as duas impropriedades.

Dias depois do Natal meu marido foi designado para ir buscar um avião (um B-25. Famoso pela proeza de ter bombardeado Tókio na segunda guerra) no Campo de Marte, em São Paulo devendo estar de volta no dia 30 de dezembro. Corriam soltos na Base os preparativos para a festa do reveillon que iria ocorrer no cassino de oficiais. As senhoras mais graduadas comandavam as menos na produção do evento ao qual seria obrigatório comparecer. E eis que no dia 30 sou comunicada de que alguma coisa havia impedido o retorno de meu marido que este só iria se dar no dia 2 de janeiro e que um casal havia sido designado para me acompanhar a tal festa.

 À decepção causada pela não chegada do marido foi suplantada pelo espanto que me invadiu por ter que ser “acompanhada”. O cassino ficava a poucos metros do lago que por sua vez ficava a poucos metros de minha casa. De qualquer modo agradeci e informei que não havia necessidade de escolta já que eu poderia ir sozinha. O espanto com esta insubordinação transferiu-se para o rosto do portador da notícia, já muito traumatizado pelo meu convite para entrar para um café, visivelmente considerado da maior inconveniência embora fosse de se esperar de alguém que usava duas peças e fumava.

O dia 31 amanheceu lindo sonorizado pela alegre debandada de moças que se dirigiam à cidade em busca de um salão de cabeleireiros. Arriscando comparecer à festa totalmente desgrenhada resolvi ir a Praia de Ponta Negra, naquela época, um deserto de gentes e um esplendor de beleza selvagem. Sei lá por quanto tempo me deixei ficar entre água e areia, às vezes imóvel, às vezes subindo e descendo as dunas. Voltei para casa já o sol se pondo, morta de fome e de preguiça. Uma combinação que levou inevitavelmente a sanduíches devorados ao som de Orlando Silva na composição de Agustín Lara deblaterando contra a Pecadora. Vai ver eu estava me sentindo uma por não estar empenhada como deveria nos preparativos para comparecer a tal festa. Naquele momento ainda era certa a minha ida. Pelo menos eu pensava assim.

Horas depois, já pronta, apresentando um razoável arranjo capilar, fechei a porta da casa atrás de mim. O carro, um Fiat pulga, estava estacionado em frente e dele só estava separada pela varanda que eu havia cercado de treliças tornando minha casa bem diferente das demais. Neste momento fui invadida por uma sensação de liberdade como poucas vezes tive em minha vida e me dei conta de que não queria ir. A única companhia que me atraia naquela noite tão linda era a minha. Deitei-me na rede escutando o som dos muitos carros que partiam demandando o cassino. E, de repente, o silêncio.

Através da treliça olhei o céu coberto das estrelas que um dia reparti com meus primos no gramado do sítio. Não consegui mais reconhecer as minhas estrelas da infância. Na verdade o único reconhecimento que estava ocorrendo era o de mim mesma. Num alumbramento me dei conta de que tudo em volta poderia mudar e certamente mudaria. Eu não pertencia aquele lugar, pertencia a mim mesma e só a mim. Estivesse onde estivesse nos reveillons que viriam esta era a única certeza. Seria maravilhoso, é claro, estar com as pessoas de quem gostava e que gostavam de mim. Mas nem sempre estariam presentes. Mas eu sim, sempre estaria comigo.

E veio aquela sensação pra lá de boa de que eu curtia minha companhia. Seria terrível se assim não fosse. E o óbvio revelou-se numa simples e extraordinária constatação: aconteça o que acontecer sou e serei sempre a única pessoa em todo mundo com quem vou conviver todos os anos, meses, dias, horas, minutos e segundos de minha vida.  

2006


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