Em
minha bem sucedida carreira de “serial clumsy”, muitos dos episódios ocorreram
em momentos trágicos e de grande sofrimento. A lembrança de um deles me vem
hoje na leitura da deliciosa crônica “Memória sobre Manuel Bandeira” publicada
no último número do Montbläat, escrita por José Roberto Teixeira Leite (será
ele parente de Dr. Edgar Teixeira Leite uma das figuras que mais me encantava
nas minhas lides com Reforma Agrária?).
Foi
um dos episódios mais absurdos de minha capacidade de criar situações
embaraçosas para mim, e muitas vezes para outros, e se deu exatamente num
momento de grande tristeza para mim e para muita gente. Era dezembro de 1959,
tinha eu vinte e nove e naquela época apenas dois filhos. Morava em Recife,
casada com um oficial da FAB. Radiante, havia vindo passar as férias no Rio de
Janeiro para participar das festividades de fim de ano que todos os anos
envolvia a família numa sucessão almoços, ceias e jantares que começavam no dia
24 de dezembro e se desenrolavam até o Dia de Reis, em janeiro.
Poucos
dias antes do Natal um telefonema destruiu nosso mundo familiar, tão divertido
e tão unido. O choque de um avião da VASP com o de um cadete da aeronáutica
havia provocado a morte de todos os envolvidos. Entre eles estavam meus tios
Lucia Miguel Pereira e Octávio Tarquínio de Souza, ambos escritores. Ela,
crítica literária, ensaísta e autora de extraordinárias biografias críticas de
Machado de Assis e de Gonçalves Dias; ele, historiador de fama, com quem
aprendi que D. Pedro I era “femeeiro”, palavra que nunca havia escutado.
Em
casa de Lúcia (para mim Madinha) eu havia sido introduzida, muito cedo, num
mundo de beleza, inteligência e cultura. Desfilavam por lá senhores e senhoras,
criadores de personagens, poesias, quadros e desenhos que me haviam sido
apresentados antes dos autores, desde muito cedo. Emocionada eu apenas assistia
as conversas que me pareciam mágicas. Aquela cobertura, de onde se via o Parque
Guinle, era para mim um lugar sagrado. Não eram só os tios que eu havia
perdido. Uns poucos que os freqüentavam eram também amigos de meu pai. Mas não
todos. E eu não mais os veria em sua inteligência e brilho.
O
velório no São João Batista estava um tumulto. No mesmo acidente havia morrido
o repórter Luciano Carneiro. Eram três personalidades que ao mesmo tempo
deixavam a vida e centenas de pessoas chocadas lotavam as capelas. Minha mãe,
muito abatida, pediu-me: minha filha
cuida de Tio Frederico. Ele está muito velhinho e fez questão de vir. Tenho
medo que se emocione demais. Tio Frederico era um desses tios que só se
vêem em enterros. Morava longe e raramente sabíamos dele. Era irmão de meu avô
que eu nem havia conhecido.
Corri
os olhos pela multidão que lotava a capela. Lá no canto, sentado e chorando
muito estava Tio Frederico. Sentei-me ao lado dele, sem coragem de dizer nada.
Peguei sua mão e passei a acariciá-la tentando dar um apoio que nem seria
tanto. Ele me olhava com uma expressão estranha. Era visível que não queria
falar nada. Respeitei o seu silêncio e ficamos apenas chorando. Vez por outra,
quando o choro recrudescia, eu o abraçava e lhe dava um beijo que nele parecia
provocar mais estranheza ainda. Ao sairmos em direção ao túmulo eu lhe dei o
braço e o amparei no andar. Lembro-me que pensei: ele anda bem para idade dele.
Mas assim mesmo retardei o ritmo que ele tentava imprimir como que querendo
fugir de meus cuidados. Quando tudo terminou alguém que eu não conhecia
apoderou-se de tio Frederico dizendo que ia levá-lo em casa. E ele partiu sem
se despedir de mim, ainda chorando muito.
Livre
da incumbência procurei localizar a família e dou de cara com Jorge Laclette,
amigo de infância, meu e de meu irmão. Não consegui achar os outros e
resolvemos ir a pé para casa de minha mãe, que era na Rua Mena Barreto e onde,
certamente, todos se reuniriam naquela necessidade de se estar junto depois de
um golpe desses.
Foi
aí que Jorge fez uma declaração que me deixou confusa: não sabia que você era tão ligada ao Manuel Bandeira. Surpresa,
respondi: não sou, não, Jorge. Eu o conheci
apenas em casa de Madinha. Ele veio? Jorge arregala os olhos e dispara: você está maluca? Passou horas de mãos dadas
com ele. Abraçando, beijando, agarrada a seu braço!
Estarrecida
me dou conta de que aquele velhinho (que na época era mais moço do que sou
agora) não era Tio Frederico. Até hoje, anos passados de sua morte, o nome
Manuel Bandeira me dá arrepios. Mesmo quando releio as poesias que adoro.
Imagino o que deve ter pensado daquela louca que dele se apoderou impedindo que
fugisse de carícias e apoio não desejados: o olhar que eu identificara como
estranho era de espanto e horror!
Rezo
para que ele nunca não tenha identificado naquela moça a adolescente que o
devorara com os olhos mais de dez anos antes. Chegando a casa mamãe me
interpela: e Tio Frederico? Covardemente informo que ele foi direto para
tomar o ônibus de volta. E passei algumas horas no terror da chegada da notícia
de um velho desorientado vagando pelo São João Batista. Mas aparentemente Tio
Frederico retornou são e salvo ao seu refúgio e morreu anos depois sem saber
que havia sido abandonado por uma sobrinha neta trapalhona.
2006
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